COMO A NEVE DE MAIO

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Roberto Schima


Nevava lá fora.
Era uma neve espessa de tonalidade cinzenta, que caía sem parar nessa tarde de maio. O vento soprava forte por entre os zimbros do jardim, produzindo um uivo monótono e triste. Agitava os flocos em rodopios de bailarina, fazendo-os pousar na folhagem para depois terem de se mudar novamente. Mais além, os ciprestes formavam uma cerca viva ao redor do edifício, e seus galhos cobertos de neve gemiam como se não mais suportassem o frio que, na infância, desconheciam.
"Estranho...", pensou, observando a fileira de árvores escamosas. "São como sentinelas da advertência, e todas olham para mim, acusando-me."
Desviou sua vista para a entrada, as grades em arabescos e a rua sinuosa onde, havia muito, as pegadas tinham sido apagadas. Os dedos acariciaram a cortina à procura de consolo. Mas não havia consolo. O rosto magro e afilado trazia no semblante uma expressão contida de desespero. Ao mesmo tempo em que via as colinas perderem-se na vastidão cinzenta, podia observar o seu próprio reflexo no vidro mover os lábios e pronunciar, sem emitir som algum: "Cinza..."
E os flocos de neve continuavam a cair como grãos de areia de uma ampulheta. Entretanto, na sua imaginação, eles começaram a subir.
"É o mesmo cinza de que me recordo desde os tempos de criança, desde que erguia os meus bonecos de neve com nariz de cenoura no quintal de casa. Ah, vovó... vovó Ernestina, teria você dito a verdade? Houve mesmo um tempo, um tempo quando você era jovem, menina ainda, que não caía neve por estes cantos do mundo, e que, nos lugares em que ela caía, era branquinha, branquinha, como chumaços de algodão? E, quase sempre, podia-se ver o sol banhar a cidade de dourado sob um céu de um azul sem limites? Eu não acredito! Ainda hoje, custo a me convencer disso."
Viu seu reflexo esticar os lábios num meio sorriso, do mesmo modo que ele sorrira naquela época em todos aqueles absurdos. Ainda hoje, podia se lembrar da velha, exibindo a boca desdentada, contando-lhe aos sussurros junto à lareira sobre animais e paisagens fantásticos. Até onde ele sabia, o céu sempre fora cinzento, as nuvens sempre foram cinzentas e a neve cor de chumbo sempre vertera das alturas, sempre.
"Mas não deixei de tentar imaginar como seria ver o sol irromper na primavera e derreter a neve dos telhados em incontáveis cataratas. Um globo incandescente e eterno muito além da abóbada de nuvens... Qual! O céu plúmbeo é e foi todo o universo para mim, e isso já era o bastante para alguém que tinha somente quinze anos e esquecera o horário de voltar para casa."
Uma lufada atingiu a janela, e o assobio que se sucedeu fez com que ele recordasse da risada da vovó Ernestina diante do olhar esbugalhado do neto. Era algo assim como: "Ih! Ih! Ih!", um pintinho piando.
- Mentirosa! Mentirosa! Mentirosa! - cantarolou o reflexo, baixinho.
- Hã?! O que foi que você disse?
Os grãos de areia pararam de enfrentar a gravidade e despencaram todos de uma só vez.
Girou a cabeça, dando as costas para as cortinas. O hospital, sim, o hospital. Por um instante, ele havia se esquecido que existia um mundo distinto das recordações. A primeira coisa que avistou foi o emblema: uma rosa enovelada por uma serpente, e emoldurada pelos dizeres "Centro Hospitalar Penha-Cangaíba". Abaixou os olhos para a enfermeira atrás do balcão. Trazia um sorriso inquisidor. Sem ser propriamente bonita, não era o tipo de pessoa a se passar despercebida.
- Desculpe-me, Eva. O que foi que você disse?
- Eu perguntei justamente isso: o que foi que você disse?
- Ah... Nada, nada. Estava apenas me lembrando da minha avó e de como eu arreliava com ela cada vez que ela afirmava que, um dia, a neve fora branca, branca como o seu uniforme, Eva.
Seu nome completo era Eva Arruda de Camargo e, no primeiro dia que a vira, ele pensara em como combinava com aquele lugar e aqueles odores de anfetaminas. Lembrava-lhe bula de remédios. Naturalmente, nunca lhe contou.
Estavam a sós no saguão. Durante todo o tempo em que ele ficara a observar através da janela, ela estivera entretida com seus relatórios enfadonhos diante do terminal. Agora, estava pronta para digitar a ficha de saída de uma paciente que, depois de dezesseis anos de internação, teria alta de seu estranho tratamento. Mais estranho ainda pelo fato de ela nunca ter estado doente. "Como esta vida é estranha, como tudo neste mundo é estranho", estava pensando um segundo antes do reflexo murmurar. E Eva apreciou essa pausa, essa quebra do silêncio tumular.
- Meu pai também falava sobre isso. Ele tinha muito medo por causa da censura, mas não achava justo que seus próprios filhos fossem obrigados a viver à sombra da ignorância.
- Minha avó também tinha medo - concordou, aproximando-se. - Não sabia que seu pai conheceu aquele período.
- Não conheceu. O pai dele havia lhe deixado um diário antes de morrer, onde contou tudo o que sabia. Foi um grande risco para a família, minha avó que o diga; as inspeções domiciliares estavam no auge. Somente na adolescência ele pôde folhear o manuscrito. Estava oculto numa árvore. Tinha até fotos.
- Fotos? Mas e o Decreto de Censura? E a repressão? Todo o material deveria ter sido entregue ao Estado para incineração.
A enfermeira encarou-o, orgulhosa.
- Meu avô tinha tendências anarquistas e jamais aceitou qualquer tipo de ordem, mesmo ciente dos desaparecimentos e das torturas. Dizia que a hierarquia era dividida entre dois tipos de idiotas: os que mandavam e os que obedeciam.
Sol. Céu azul. Nuvens brancas. A selva amazônica. A mata atlântica...
- Você tem esse diário? E as fotos?
Eva abaixou os olhos para a tela do terminal. A princípio, deu a impressão que iria retomar o serviço, porém seus braços continuaram cruzados.
- Infelizmente, não - respondeu pesarosa. - Meu pai não era tão ousado assim e temia os delatores. Queimou tudo ainda na mocidade. Eu bem que gostaria de ter visto. Se ao menos ele tivesse guardado por mais alguns anos dentro daquela árvore, quando o decreto deixou de vigorar. Se ao menos alguém tivesse guardado... Só resta imaginar.
- Imaginar uma memória perdida - completou ele, soltando um suspiro.
- Sim, e lamentar por mais essa manipulação da História.
O homem assentiu. Trajava um casaco de couro sintético, combinando com a calça de mesmo material. Possuía a estrutura sólida de quem, durante anos, dedicara-se a algum tipo de esporte. A blusa por baixo do casaco era de um tecido sintético também, e trazia, à altura do peito, costurado com linha vermelha, o símbolo da confecção e a origem: "Made in Antártida". Muitos produtos vinham de lá, o que não deixava de ser irônico, já que, em seus primórdios, a Antártida era obrigada a importar tudo.
A enfermeira sorriu e o viu retribuir. Suas rugas se pronunciaram e, apesar de ter um aspecto bem apessoado e bem nutrido, era flagrante que passara as últimas noites insone. Depositou de leve a mão sobre o ombro dela e, em seguida, voltou-se novamente na direção da janela.
- Neve branca... Foi antes da guerra.
- Isso, Eva. Antes da malfadada guerra.
Antes que qualquer um dos dois pudesse dizer mais alguma coisa, o videocomunicador sobre o balcão soou. Na pequena tela de cristal líquido, surgiu o rosto de um homem grisalho com amplas sobrancelhas negras. Tinha um ar cansado e estava tirando um par de luvas de borracha.
- Enfermeira Eva, por favor, o Sr.Erasmo Marcolin de Pádua encontra-se no balcão?
- Está sim, Dr.Paulo.
- Bom. Peça-lhe que se dirija ao laboratório imediatamente. Vamos começar agora.
- Sim, senhor. E, doutor... - Hesitou.
- Diga, enfermeira.
- Precisará de mim como assistente?
- Não, já lhe disse que não. A Márcia cuidará disso. Se você viesse, quem iria substituí-la? Logo hoje a Vanda tinha que faltar.
- Está bem, doutor.
A comunicação foi encerrada, e Eva lançou um sorriso desajeitado para aquele homem de pouco mais de trinta anos. Tentou concentrar seus pensamentos, fútil tentativa. "Como as coisas podem ficar de pernas para o ar em tão poucos dias?", indagou-se.
Erasmo não conseguiu encará-la. Fitou a janela, tentando recapturar a neve, o vento que uivava e as recordações de um tempo que não voltaria nunca mais. Mas as cortinas não o deixaram ver o cenário brumoso.
Nada havia para confortá-lo.

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