Ventos para Areia Branca - Capítulo III

Começar do início
                                    

Apesar de, como já disse, não ser muito fã do tal de telefone, quando há qualquer emergência de Salvador, vejo-me obrigada a admitir, ele é sempre uma mão na roda. Rápido e objetivo! Alguém do povoado sempre vinha me trazer recados lá do posto, desde os dias em que ele começou a operar. Quando eu igualmente queria falar com meus filhos em caráter de urgência, também me rendia à invenção de Graham Bell e corria aos telefones, somente dois deles, lançando-me em uma jornada a cavalo pelas estradas empoeiradas que ligavam ao mais perto do que podíamos chamar de civilização. Apesar de os meus filhos já terem me oferecido inúmeras vezes um carro a álcool – com motorista –, nunca aceitei.

Ao chegar ao Posto Telefônico naquele começo de noite, desci rapidamente da charrete – ou pelo menos o mais rápido possível para uma velha entrevada de noventa anos – e pedi à gentil telefonista que discasse os números escritos a lápis naquele velho papel ensebado que lhe entreguei. Já quando eu perdia as esperanças de sucesso, depois de cinco tentativas – parecia que não havia ninguém em casa – uma voz bastante familiar atendeu a ligação:

– Pai do céu, vocês estão surdos nesta casa, Ducarmo? – extravasei a minha tensão com certa grosseria.

– Não é Ducarmo não, mãe – falou Gracinha, minha filha caçula. Depois de velha passei a trocar os nomes dos meus filhos com facilidade. – Sou eu, sua filha menos amada – ela deu uma risadinha cínica.

– Oh, minha filha, por que você fala essas besteiras? Você bem sabe que eu amo todos vocês igualzinho. O mesmo amor que eu sinto por Airton, Arlindo, Tavino, Mira e Ducarmo, sinto por você, Gracinha – recitei com carinho os nomes dos meus seis filhos, na ordem de nascimento. Isto porque, como se respeitosamente velasse um eterno luto, não verbalizei os nomes dos gêmeos mortos ainda bem novinhos e da bebê que faleceu devido a um ano de extrema seca e privações. Não chegaram nem a ser batizados. Sempre mantinha essa dor em silêncio.

Mas a maior de todas as dores, nunca consegui esconder, pois essa dor eu posso facilmente definir como uma grande violação da natureza humana. Filho enterra pai, mas pai não foi feito para enterrar filho. Tampouco, mãe enterrar filha! Uma quebra de laços entre mulheres. Uma parte de mim morreu com Altamira, minha querida Mira. A quarta herdeira do meu amor incondicional faleceu na flor da sua juventude. Ela tinha acabado de se graduar no magistério de Jacobina, e desde então, há pouco mais de trinta anos, uma ferida imensa foi aberta no meu peito e não há noite nessa vida que eu não me lembre do seu semblante plácido. Muitas dessas noites eu ainda choro como criança de colo.

– Que barulho é esse na casa de Ducarmo? – interrompi o meu rápido devaneio e perguntei rispidamente ao ouvir a alta música tocada ao fundo da ligação, junto ao burburinho de várias vozes a conversar.

– Esqueceu, mãe? Hoje é o dia da festa de despedida de Neno – Gracinha respondeu ainda não muito convencida de todo o amor por mim declarado.

– Aonde o meu neto vai? – perguntei sem nada entender.

– Não te disseram? Ele vai para Princeton, nos Estados Unidos, por seis meses.

– Ele vai fazer o quê no estrangeiro? – apreensiva, quis saber mais.

– Calma, Dona Chica, eu sei que você já deve estar aí roendo as unhas, preocupada com seu principezinho. Zé Maurício vai a trabalho.

– Ah! Aquele miserável velho já arranjou outra porcaria para ele fazer! – referi-me a Estevan Pompeu de Lear, a pior praga que o mundo já recebeu, e para a nossa infelicidade, passou a ser da nossa família.

Não obstante o meu ódio por Estevan, inexplicavelmente sempre amei de paixão o seu filho, o marido da minha filha, o pobre Gonzalo. Morreu cedo, por conta da perseguição do pai, o demônio encarnado em gente, que não satisfeito, agora atormenta as existências da minha filha e do meu neto. Não sei se por isso, eu tive aquele mau presságio em relação a Neno esta manhã. O coitado vive os seus dias angustiado, posso sentir na sua voz, mesmo ao telefone, quando esporadicamente nos falamos. Impotente frente a tanto poder, resta-me rezar e acender muitas velas para que São Tiago Maior ilumine o caminho do meu querido neto, e que afaste dele o espírito ruim daquele velho maldito.

Ventos para Areia Branca - CapítulosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora