Perto demais de Deus (3)

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Reviraram meticulosamente a clínica. Aparentemente, Hugin morava lá, em um pequeno quarto atrás da cozinha que era uma espécie de farmácia improvisada. Os documentos que encontraram foram decepcionantes. Apenas formulários sobre os pacientes, descrição de casos... e prescrições que legalmente colocariam Hugin na cadeia por prática ilegal da medicina. Mas nenhuma menção a bombas, à Resistência, a Mariana ou a qualquer outra atividade suspeita. Era como se ele fosse apenas um médico clandestino, não fosse o bunker no quintal.

Saíram do Fonseca em um carro comum, não querendo chamar mais atenção do que a aparência incomum de Fenrir já fazia. Carlos tentava encontrar uma forma de localizar o estranho.

- Ele provavelmente tem algum outro esconderijo. Deve ter usado magias de portal ou algum artefato similar para poder sair daqui sem ser visto. Nunca iremos o encontrar assim.

Carlos se perguntava como a Ordem não previra algo assim. Havia algo ali que não estava sendo bem contado.

- Você tem os lugares onde as fotos foram tiradas? Poderíamos tentar traçar um padrão.

Fenrir sacudiu a cabeça.

- Já tentamos. É tudo muito aleatório, ele sabia que o iriamos seguir.

Pararam na frente de um prédio de classe média em Icaraí, com grades na frente e com o leve tremeluzir azulado que indicava a presença de feitiços de proteção. As famílias que podiam arcar com o custo adicionavam magias protetoras aos equipamentos de segurança tradicionais, transformando os bairros com muitos edifícios residenciais em pequenos pólos de energia residual que incomodavam Carlos. Parte do treinamento era justamente ser capaz de sentir os vestígios de magia deixados por magos. Estar ali, no meio de tantos campos de proteção dava à pele de Carlos a sensação de ter se deitado numa cama de urtigas.

- Vamos, soldado.

Carlos respirou fundo e acompanhou o simbionte, sem dizer nada. Entraram na portaria do prédio mostando suas insígnias, mas o porteiro não ficou satisfeito.

- E vocês querem subir no apartamento de dona Mariana com ordem de quem?

- Temos um mandando de Apreensão e Intervenção aqui – Carlos mostrou o papel, com paciência. Percebeu um brilho estranho, azulado, nas mãos do seu novo comandante e temeu pela segurança do porteiro que afinal só estava fazendo seu trabalho. – Infelizmente, dona Mariana andou se metendo com as pessoas erradas e agora precisamos investigá-la.

Como o sujeito ainda não parecia totalmente convencido, Carlos mostrou uma foto de Hugin.

- Esse sujeito aqui, você o conhece?

Houve um instante de hesitação antes da resposta.

- Olha, veio aqui uma ou duas vezes só, trazendo livros para dona Mariana. Mas eram livros de historinha mesmo, sabe? Ela até me emprestou uns. Nada demais.

Fenrir finalmente perdeu a paciência. Jogou Carlos para trás com um empurrão, afastando-o da mesa do porteiro e bateu o punho, que brilhava em um tom forte de azul, do lado do interfone.

- Escute, e escute bem. Esse amigo de dona Mariana que emprestou livrinhos para vocês é um mago renegado, capaz de imensas atrocidades. Ele é suspeito de explodir a Catedral. Nós iremos subir agora.

Carlos tinha aproveitado o momento e chamado o elevador. O porteiro não respondeu, mas no momento em que a porta do elevador se fechou, Carlos teve a impressão de que ele pegava o interfone.

O apartamento de Mariana Falcão era, na verdade, o apartamento dos pais dela, bem-sucedidos comerciantes portugueses. Os pais estavam viajando e a única pessoa em casa era uma mulher de língua afiada e expressão fechada, que se recusou a abrir a porta para eles.

- Não tem ninguém em casa.

- Senhora, temos um mandato.

- Me mostra então. E nem vem fazer cara feia pra mim, gringo, que sei dos meus direitos – ela leu atentamente o papel, com atenção, demorando mais do que o necessário. Quando finalmente reconheceu que não havia nada que pudesse fazer para impedi-los de entrar, tirou a corrente da porta e os deixou entrar.

No momento em que Marta – era o nome na identidade da mulher que os atendera – bateu a porta, Carlos podia jurar ter ouvido um eco, como de outra porta que se fechava em outro lugar. Mas como Fenrir não pareceu perceber nada, então deixou de lado.

O apartamento era grande e espaçoso, bem decorado, mas sem luxos. Filha única, Mariana tinha várias regalias, como o maior quarto da habitação de três dormitórios, com um imenso closet anexo. Depois de uma rápida olhada na sala, Fenrir gesticulou para que fossem para o quarto.

Só o quarto, sem o closet, era maior do que o apartamento de Tom. Fenrir foi direto nas gavetas, que arrancou dos móveis sem cerimônia, ignorando os protestos de Marta. A empregada desistiu de tentar atrapalhá-los e se retirou. Carlos conformou-se em remexer a parte do quarto que funcionava como escritório. Junto pendrives, cadernos, dois hds externos, e desconectou o gabinete do pc. Uma mancha na pouca poeira de uma das mesas de trabalho o fez ver que ali havia um notebook que fora retirado.

Fenrir já tinha passado ao closet e grunhiu lá de dentro.

- Tem roupas faltando.

- O notebook também não está aqui.

O simbionte saiu grunhindo do quarto, passando pelo corredor e indo direto para a cozinha, as marcas em seu corpo brilhando, Carlos logo atrás. Como ele temia, Fenrir foi para cima da empregada, jogando-a contra uma das paredes.

- Comece a falar.

- Não sei de nada, seu monstro. Se não me soltar, vou chamar a polícia!

- Solte ela, Fenrir! – colocou a mão em um dispositivo que anulava campos mágicos. Dava dores de cabeça atrozes em todos no seu campo de ação, mas não iria deixar que ele machucasse a mulher. O oficial percebeu a sua decisão e a soltou. Olhou ao seu redor pela cozinha e viu algo que o fez parar.

- Cadê o gato?

Havia uma caixa de areia na área de serviço.

-Dona Mariana o levou no veterinário. Olha aqui, se vocês não saírem agora...

Ele nem a deixou terminar a ameaça e saiu pela porta da cozinha, arrancando-a com um gesto da mão brilhante.

- Vamos, Carlos. Mariana Falcão sabia que viriamos e nos enganou. Leve tudo que possa ser evidência e me encontre no carro. E você – virou-se para a mulher. – se eu souber que nos enganou, vou mandar prendê-la como cúmplice.

A resposta foi uma série de palavrões que acompanhou Fenrir pelo corredor do prédio. Quando Carlos ficou a sós com a empregado, achou melhor continuar em silêncio e voltar para o quarto.

Sim, alguém avisara Mariana. E havia o porteiro e a empregada, que pareciam tê-los atrasado de propósito, além da porta que ouvira bater. Ao ver o comportamento errático de Fenrir, alog dentro dele ficara grato por Mariana ter conseguido escapar por enquanto. Se o simbionte a pegasse, não haveria um julgamento justo.

Fé cega, faca amoladaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora