Fé cega, faca amolada (3)

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Quando recuperou os sentidos, Tom estava em uma cama dura, em um ambiente escuro e que cheirava a terra. Não sentia dor nem desconforto, era como se tivesse acordado de uma soneca no meio da tarde. Espreguiçou-se e estalou todos os ossos das costas.

Olhou ao redor, não esperando muita coisa. Estava certo. Uns móveis gastos, um abajur em cima da mesa de cabeceira que, ligado, mal iluminava até a porta. Suas coisas estavam jogadas em uma cadeira. Levantou, decidido a encontrar respostas.

Andou por um longo corredor, sem encontrar mais ninguém. Uma série de portas iguais fechadas dos dois lados, o número pintado em cada uma era a única diferença entre elas. A luz fluorescente deixava tudo com uma atmosfera de hospital, desmentida pelo cheiro forte de terra e de lugar fechado.

Finalmente chegou a uma sala imensa. Três sofás fechavam um dos cantos, uma televisão de plasma numa das paredes. Uma estante imensa percorria outra parte da sala, com três mesas de jantar na sua frente. Uma mistura de biblioteca, sala de estar e jantar, estranhamente vazia e bem cuidada.

- Boa tarde, Antônio.

Virou-se para cumprimentar a Dama.

- Boa tarde. O que aconteceu?

- Precisávamos trazê-lo até aqui sem despertar muitas suspeitas. Sabemos da ordem de caça e eu já esperava que você nos procurasse... mas não podia parecer que estávamos ajudando um fugitivo. – ela fez um gesto indicando que ele sentasse. Quando Tom se acomodou, ela sentou-se à frente dele.

- Enquanto você estava inconsciente, fizemos uma checagem para saber se tinha algum dispositivo de rastreamento em você. Mas ainda falta um passo para podermos garantir que você está limpo.

Tom ergueu a sobrancelha. Ele realmente não pensara que fosse tão difícil conquista a confiança do grupo rebelde, mas teria que se submeter.

- E qual seria, Dama Cristina?

Ela sacudiu a mão.

- Pode ser só ‘Cristina’. O Dama foi invenção daquele blog da Mariana. Não gosto, mas dá uma certa respeitabilidade que ajuda muito a manter o Templo longe dos meus negócios. Bem, por mais que tecnologia e artefatos mágicos sejam úteis, tem uma coisa que não pode ser substituída: um bom farejador.

O mago ficava cada vez mais intrigado.

- Farejador?

- Zé! – Cristina gritou, sem responder. O balconista da lanchonete apareceu, a expressão ainda fechada e carrancuda.

- Ele está pronto?

A mulher sorriu e estalou dois dedos. Amarras saíram da madeira e prenderam os pulsos e os tornozelos de Tom.

- O que...

- Mágica, querido. Ou você nunca desconfiou dos meus motivos para advogar pelos direitos dos magos? Mas tive sorte de ter um pai estudioso de ciências arcanas e tecnologia mágica. – ela colocou a mão no pescoço, onde uma cruz ankh estava pendurada em um cordão de tecido. – Posso beijar um neo-templário na boca e ele não sentiria uma gota de mágica.

Zé rosnou alto com essas palavras.

- Não gosto quando você brinca assim.

- Desculpe, amor. Você sabe que é só para reforçar o poder do amuleto. Quem precisa de um beato bobalhão quando se tem um lobo?

O olhar que dois trocaram fez Tom sentir-se constrangido, como se estivesse testemunhando um momento muito íntimo. Ele deveria ter imaginado – também – que havia algo entre os dois. Ela deu um sorriso cheio de promessas e ele desviou o olhar para o mago recém-chegado.

- O negócio é o seguinte: eu vou cheirar você. Não é agradável para mim, não vai ser agradável para você, mas é necessário para sabermos se podemos confiar em mais um renegado.

Ele se aproximou, mudando gradativamente, cada passo trazendo uma nova alteração. Quando estava tão perto que Tom podia sentir a respiração dele foi que entendeu o que Cristina quis dizer com “lobo”. Zé era um licantropo.

Fechou os olhos, com medo, mas tranquilo. Não tinha nada a esconder e sabia que eles veriam isso. Porém, foi surpreendido quando, na primeira fungada, a criatura uivou.

- Cheiro de neo-templário. Forte e recente! Ele é um espião!

Demorou um segundo para ele entender. Zé tinha sentido o cheiro de Carlos, por causa da noite que passaram juntos. Não teve tempo para se explicar, pois o lobisomem o socou com força no peito, derrubando-o, ainda preso na cadeira. Sentiu uma pressão na barriga e viu Cristina, o pé o prendendo no chão e os olhos em chamas. Ele tentava em vão juntar força mágica o bastante para pelo menos se soltar, mas seu treinamento precário jogava contra ele.

- Bem, você vai morrer de qualquer jeito. Pode ser longo e sofrido, nas mãos do Zé, ou rápido e tranquilo, um feitiço de sono e a garganta cortada. Depende de quanta verdade você disser. – ela gesticulou, uma aura verde se formando ao redor deles. – Fale!

A mão do licantropo estava no seu pescoço. Ele não tinha saída a não ser responder.

- Eu... eu transei com um templário na noite passada. Carlos foi me avisar da ordem de caça, eu gosto dele há anos, não resisti e foi tudo. Não disse para onde vinha e ele saiu da minha casa antes de mim.

A luz ao redor continuou verde. Cristina bambeou um pouco e Zé a segurou com a mão livre.

- É verdade, amor?

- É sim – ela respondeu com voz fraca. – Bete me falou de um amigo do irmão que ainda estava livre. Pelo visto é ele.

Ela tirou o pé de cima dele e sentou numa cadeira próxima. Zé levantou a cadeira e as amarras sumiram. Tom esfregou os pulsos, ainda espantado com tudo que estava acontecendo.

- Vocês conhecem a Bete?

- Sim, ela é um dos nossos contatos no Círculo de Niterói. Não deve estar sabendo da sua fuga ou teria nos avisado e sua recepção teria sido diferente. Desculpe por isso.

- Tudo bem, eu entendo. – e apesar de tudo, ele entendia mesmo. Vidas estavam em risco ali, eles não podiam se arriscar.

Zé estendeu a mão, o rosto já totalmente humano com uma expressão mais leve.

- Antônio...

- Meus amigos me chamam de Tom.

O licantropo sorriu.

- Tom, bem-vindo ao QG da Resistência Mágica Brasileira.

Fé cega, faca amoladaWhere stories live. Discover now