Povoada casa amarela

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     Oito décadas e meia não são suficientes para se perder um hábito. Numa longínqua tarde como esta, estaria deitada também  deitada  numa cama morna pelo sol, passando meus dedos entre os ácaros aparentes, fazendo-os dançar num ritmo aquático na fresta de luz solar que se intrometia, atravessando o quarto. Desliguei uma voz distante ao apertar um botão que nem vejo mais. Como aquela televisão está empoeirada, Santa Clara. Agora tínhamos alguns fios rebeldes que escaparam de minha coberta verde de linho, voando junto aos novamente flutuantes ácaros. Sempre que ele me visita, viro meu rosto pra esquerda e vejo uma velha de cachinhos cor de ovelha numa moldura retangular em vertical, pendurada na parede. Ele, o tédio, visita-me todos os dias, grudou-se nos cantos do teto. Como doí, quando nos esforçamos para nos levantar da cama; após oito décadas de respiração e batimentos cardíacos, seu corpo anda como um peso insistente e resiliente; faz com que vós queira deitar a todo segundo, todo o tempo. Mas era sexta, na hora da sesta, no chão ao lado da porta havia uma cesta que preparei para Hélio. Amarelas fitas. Vivo num mundo amarelo, as paredes de minha grande e povoada casa são cor de pera, entrecortadas e contrastadas por empregadas de branco, que cuidam de meu alimentar, garantem meu sossegar, e são pagas para validar minha velhice, ludibriar minha capacidade cerebral, fazer-me amada e acalentada. Que corredor frio, uma sombra cobria  parte das paredes, refrescava os enrugados mais calorentos. Meus passos eram como passos de um moribundo que tivesse com os pés esfolados, como se o piso fosse de lava, tal lentidão que era meu ritmo de andar, tal demora era a minha para chegar à esquina, enfim tornar a direita e seguir atrás de uma empregada. Precisava de ajuda com a recepção de Hélio. Minhas pantufas antigas e acinzentadas chegaram ao fim do corredor, porém de uma pausa e suspiros necessitei. Mas olhos amarelados caíram em costas vestidas em um alvo tecido feito de algodão, vestindo uma moça que saía de um dos quartos.

     - Angélica, filha...

     - Dona Eligia, onde a senhora está indo?

     - Pode me ajudar? Hélio virá hoje, está marcado em meu calendário, trinta de setembro, preparei uma cesta com doces, o favorito deste, pode me ajudar a embrulhar algumas toalhas que pintei, imagino que minha neta já nasceu, pintei girassóis...

     - Dona Eligia, pode contar comigo - a empregada depositou um de seus braços sobre meus ombros. - Se quiser chamo até Seu Gustavo, Dona Antonieta, podem lhe ajudar com os preparativos. Volte ao seu quarto, num minuto apareço com mais ajuda e apetrechos necessários. 

     Eligia piscou duas vezes, coçou a cabeça e retomou o caminho a pouco percorrido. A enfermeira Angélica expressou preocupação em sua face, enquanto descia um lance de escada até o segundo andar do casarão, deu com enfermeira Natália de supetão enquanto estava absorta em seus pensamentos. Esta franziu o cenho.

     - Viu um fantasma?

     - É Dona Eligia - respondeu -, diz esperar a visita do filho morto novamente.

     - Fazia tempo que não fazia isso.

     - Às vezes penso que ela faz isso para confortar à si mesma.

     - Angélica - Natália pôs uma de suas mãos sobre o ombro da enfermeira. - Todos nós temos mentiras utópicas para confortamo-nos.

CRÔNICA 30/09 - Povoada casa amarelaWhere stories live. Discover now