Parte 5

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— Olá, caros amigos cérebros! Há algo de errado com a salada de frutas? Posso pedir porções de fibras e cápsulas de nutrientes e minerais para vocês. – Era a jovem que havia trazido nossos pedidos.

— Sim, por favor. – Respondi, um pouco rápido demais.

— As novas frutas ainda estão em fase experimental. Essas últimas têm um período de vida de seis horas. Podem dizer-me o que acharam delas?

— Não sei dizer se essas ou as outras eram mais desagradáveis ao paladar. – Disse-lhe com sinceridade.

— Tudo bem. Os outros que experimentaram também não acharam agradáveis. Mas a opinião de vocês é extremamente importante para os nossos botânicos. Obrigada! Em breve, os novos pedidos chegarão.

Eu descreveria a praça de alimentação como um espaço em que você poderia facilmente tornar-se cobaia dos cientistas da divisão de botânica. Toda espécie de experimentos eram servidos ali. Em um dia de sorte, poderíamos comer algo delicioso. Nos dias de azar, o gosto ruim ficaria na boca por horas, servindo de lembrete para não experimentar as inovações mais recentes dos botânicos. Era o que o meu pai me dizia.

Quando as fibras e as cápsulas chegaram, as ingerimos.

— Sabe os ultratransgênicos? – Perguntou Louis.

— Sim. – Respondi.

— Levaram cerca de vinte anos de trabalho e pesquisa até desenvolverem alimentos satisfatórios, com um mínimo de nutrientes, fácil plantio e desenvolvimento rápido. A alimentação é completada com as cápsulas que já conhecemos. Até hoje, temos o milho e algumas espécies de abóboras. Eles foram programados para sobreviver em solo pobre e se utilizar de pouca água.

"O setor de transportes pesquisou a melhor forma de transportá-los para o mercado consumidor. Então, desenvolveram aquelas caixinhas de isopor ultrafinas, com furos. Não sei se você já viu alguma plantação de perto, mas a cor delas é desbotada, como o resto do mundo, por faltar-lhes clorofila. Vi em uma imagem digital. Isso só reforça o meu argumento de que não há nada para ver lá fora, sem considerar as atrocidades que você me contou".

— Acredito que essas plantações de hoje seriam consideradas perdidas há algumas centenas de anos. Mas, de toda forma, é o que ainda sustenta vida humana. Mas deixe esse assunto de lado! Vamos sair um pouco? – Propus.

— Caminhar pela base? Talvez eu possa te mostrar um pouco sobre a organização das bibliotecas...

— Talvez em outro momento. Tenho outra coisa em mente agora. – Disse-lhe. Percebi que o rapaz começou a enrubescer e dei-me conta que ele poderia ter interpretado errado. Ele ajeitou os óculos e, para poupá-lo de dizer algo que o deixaria ainda mais vermelho, completei: - Podemos ir para fora da base, ver um pouco do mundo. Posso te mostrar que se olhar a multidão seguindo o seu curso, imaginará que suas mentes são como as nossas e seus sentimentos e pensamentos, e tudo que nos torna humanos, ainda habita naquelas cascas ocas. Pode haver esperança para os outros.

Ele retirou os óculos para limpá-los na camisa branca, olhou para mim e sorriu. Isso acelerou a minha frequência cardíaca.

— Sim, podemos ir.

— Tem certeza?

— Tenho certeza o suficiente. Confio em você e espero não sermos linchados na superfície. Só me sinto inseguro quanto a ver tudo isso que você me descreveu. É tudo tão triste.

— Você tem medo? – Perguntei-o, pois não sabia até que ponto poderia mostrar-lhe.

— Estatira, você passa-me confiança. Sair da base dificilmente seria uma iniciativa a partir de mim. Só conheço o mundo através da visão de outras pessoas, registradas nas páginas dos livros antigos ou dos livros digitais modernos. Talvez seja a hora de ver com meus olhos e tirar conclusões próprias. – Completou com um sorriso, mas era daqueles sorrisos tristes.

Então, eu lhe disse:

— Não espere ver a lua nem as cores. O mais próximo das cores em que estive foi nos laboratórios, tão brancos e estéreis. A subdivisão de arte é a que mais me alegra. Os cientistas de lá têm fama de serem os mais felizes.

— Cara amiga cérebro, é porque você não conheceu os escritores. Eles choram com facilidade e em alguns momentos estão esfuziantes. Os poetas costumam escrever coisas muito tristes e alguns romancistas fazem seus personagens sofrer de uma forma sobre humana. Às vezes, têm crises existenciais por não encontrarem inspiração para continuar a escrever. – Percebi que aquilo era um leve gracejo de sua parte e sorri.

Como em um consentimento sem palavras, levantamo-nos e saímos da praça de alimentação, dispensando educadamente as cápsulas oferecidas pelo robô.

Fomos até a divisão médica providenciar lentes de contato castanhas, para esconder a cor dos olhos de Louis.

Seguimos por infindáveis corredores, até encontrar o elevador que nos levaria ao destino. Subimos a última escada e chegamos a uma das saídas da base, que ficava logo abaixo do caos de Mercúria. Estava escuro, mas haviam luzes tênues nas paredes dos túneis.

— Nossa! Que lugar é esse? – Louis espantou-se.

— Desculpe, Louis. Deveria tê-lo preparado para isso. Aqui é uma das seções do labirinto que é a rede de esgotos de Mercúria. Mas, não se preocupe, os resíduos não passam por aqui. Vê que o chão é seco?

— Você passa por aqui todos os dias? Esse lugar tem um cheiro horrível.

— Como há pouca água, às vezes, os resíduos ficam estagnados por longos períodos. Faço uso dessa saída com bastante frequência. Caminharemos por quase um quilômetro até o túnel de metrô antigo e pegaremos uma motocicleta para seguir por eles, até um beco próximo ao edifício onde moro.

— Você conhece quantas saídas estratégicas da base? – Perquiriu-me.

— Por volta de quinze.

— Uau! Imaginei que fossem menos. O projeto original da base possuía apenas uma entrada e saída, por questões de segurança.

— Bom, creio que os arquitetos originais mudaram de ideia ao descobrirem que o Multissetor era uma base científica e não um presídio.

Com a visão adaptada à escuridão, vislumbrei o final do túnel por onde caminhávamos. As motocicletas permaneciam cobertas por tecidos sintéticos em frangalhos. Imaginei que Louis teria algum receio, mas, enganei-me. O caminho até o beco foi tranquilo. Estacionei e recobri a motocicleta.

Subi a escada que nos levaria à superfície e ergui a tampa do bueiro. A essa hora, as ruas estavam vazias. Quando peguei as mãos de Louis para ajudá-lo a sair, notei que estavam suadas. Este era o único indício de que ele estava ansioso. Então, sua feição assumiu uma expressão de horror diante do que ele podia ver naquele escuro, dos odores que podia sentir. Podridão. Haviam três corpos insepultos naquele beco. Um deles era de uma criança, estava ali há três dias.

Não emiti nenhuma palavra de consolo naquele momento. Muitas pessoas nasciam e morriam todos os dias e a assistência médica era difícil de se obter, afinal, os médicos também eram cientistas e poucos, muito poucos, escolhiam arriscar suas vidas ao tentar cuidar dos males que atormentavam a humanidade.

E mesmo os que tentavam, poderiam acabar mortos, até porque eram cérebros. Haviam muitos remédios para as mais variadas doenças, exceto para a alienação. A violência, a pior de todas as suas facetas, nunca foi superada pela humanidade.

Seguimos caminhando silenciosamente pela rua. Ele continuou segurando minha mão. Quando passamos por uma coluna de luz, pude ver uma lágrima reluzindo em sua face. Apenas cogito a sensação que ele teve ao ver tamanha desolação. Levei-o para o cômodo onde moro.

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⏰ Last updated: Sep 17, 2019 ⏰

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A Era da ObscuridadeWhere stories live. Discover now