As lágrimas de Antemar

637 73 256
                                    

O vento continuava a soprar insistentemente na Rua do Grifo, fazendo com que todas as bandeiras com as heráldicas da cidade de Brava Solaris, no topo das muralhas, agitassem-se com violência acima da cabeça de Nóc. A noite estava calma na cidade alta, quase não se ouvia nenhum som na rua, com exceção dos passos de alguns poucos guardas pisando nas poças d'água enquanto faziam suas rondas e do burburinho distante que vinha da taverna, acompanhado de uma melodia tão baixa àquela distância que não era mais do que a sugestão de uma música.

A elfa ouviu o som de cota de malha chacoalhando e deteve seu passo, escondendo-se no vão entre duas casas. Permaneceu ali, oculta pelas sombras, e esperou que o guarda passasse por ela e se afastasse antes de sair.

Os guardas eram barulhentos e era fácil para Nóc evitá-los. Ela podia ver a luz de suas tochas surgindo antes de virarem a esquina. Os pés da arqueira, no entanto, eram leves e seus passos pareciam não produzir o menor dos sons. Ao contrário dos guardas, ela não trazia consigo uma lamparina, nem mesmo uma tocha. A luz denunciaria sua posição e seus olhos élficos eram capazes de enxergar tão bem no escuro quanto enxergariam na luz do dia. Ela tão pouco vestia metal pesado, como faziam os homens que patrulhavam as ruas. Armaduras pesadas eram barulhentas e deixavam você lento. Ela precisava ser rápida.

Nóc trajava uma armadura de couro batido de um marrom tão escuro que era quase negro, sem nenhum tipo de símbolo ou ornamento. No cinto grosso de couro, levava duas espadas curtas e várias adagas de arremesso feitas de metal leve e lixado até ficar fosco para que não refletisse luz, também trazia uma grande variedade de pequenos frascos de vidro tampados por rolhas, com líquidos de diversas cores no seu interior: compostos alquímicos dos mais diversos tipos. Por cima da armadura, trajava uma capa negra de linho com um capuz que encobria seu rosto na escuridão. Enrolado no pescoço, trazia um cachecol vermelho com aparência desgastada. Nas costas, levava uma aljava de couro preto cheia de flechas com penas de arara negra, uma espécie que habitava as florestas do sul.

Seu semblante não demonstrava a menor das preocupações. Apesar do perigo, seu rosto estava calmo. Ela tinha os traços finos dos elfos, sua expressão era astuta e transparecia uma sagacidade quase felina. Uma cascata de cabelos negros lhe caía pelos ombros, seus olhos eram de um azul profundo, impressionante até mesmo entre os elfos, e em seus lábios sempre brincava a sugestão de um sorriso. Nas costas de sua mão direita havia uma tatuagem que resplandecia com um brilho prateado, lançando uma tênue luminosidade contra a escuridão da noite. Era uma tatuagem de um eclipse, um lembrete de sua herança e de sua maldição, o motivo pelo qual foi renegada pelo seu povo que rapidamente a exilou.

Os helenar, vulgarmente conhecidos como elfos da Lua, acreditavam que sua divindade, a deusa da Lua Diana, abençoava a criança no dia do seu nascimento com sua presença. A fase da Lua em que a criança nasceu era gravada magicamente em sua mão em um ritual. Porém, aqueles que nasciam em uma noite de eclipse eram considerados malditos entre os helenar e eram exilados. A esses exilados era dado o nome de lumien, os sem-luz, e esse foi o destino de Nóc, assim como o de todos os lumien que vieram antes dela.

A elfa continuou se esgueirando pela rua, examinando os arredores com seus olhos de caçadora, perscrutando o caminho à sua frente. O ar da noite estava frio e o caminho ainda estava úmido e escorregadio devido à chuva que havia parado de cair há não mais do que uma hora. Era um lugar de aparência simples, o chão era feito de pedras cinzentas em formato levemente côncavo para que a água escorresse para a canaleta de pedra escavada no meio da estrada, por onde escorria, em um fluxo constante, o restante da água da chuva, que convergia para os pontos mais baixos da cidade.

As casas da rua eram feitas da mesma pedra escura ou de madeira. Porém, em sua maioria, não eram casas de fato, mas sim pequenos comércios, ferreiros, oleiros, corarias, lojas de tapeçaria, de componentes mágicos e focos arcanos, tecelões, joalheiros, marceneiros e, o mais importante naquele momento, alquimistas. As construções da rua inteira já se encontravam às escuras e desabitadas, com exceção das pouquíssimas casas que surgiam aqui e ali em meio a tantos comércios.

Crônicas de Valaenor: A Sombra da Cidade Alta (Prévia)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora