Capítulo 1

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KYIANA 

Eu poderia jurar que via minha alma sempre que encarava as águas límpidas de um rio que não corria. Ou corria, mas me enganava os olhos enquanto eu sentia na pele tudo o que acontecia no lugar onde eu estava. O vento soprava forte, mas ainda assim, eu ouvia os passos dos animais ao meu redor, e posso dizer que de alguma forma, conseguia sentir suas intenções também, quase como se eu pudesse ler suas mentes.

Não preguei os olhos essa noite, pensando no bilhete que tinham deixado em minha porta, e me apavorava o fato de eu não ter acordado enquanto um estranho rodeava minha casa. Logo após esse pensamento, senti uma presença forte, mas eu poderia facilmente confundi-la com o balançar das árvores maiores, se eu não estivesse aqui há algum tempo, e se eu não soubesse que alguém apareceria aqui ao pôr-do-sol. A presença se aproximava rapidamente, mas eu não conseguia distinguir de onde, até que ouvi uma agitação em um arbusto atrás de mim. A figura era uma mulher jovem, de cabelos pretos caídos sobre os ombros. Seus olhos eram rápidos mas passavam suavidade, seu rosto era pálido, mas suas bochechas rosadas me faziam lembrar a flores de cerejeira em meio a neve. Ela vestia uma longa túnica preta que me impedia de ver seu corpo, mas eu podia ver seus movimentos.

- Olá, Kyiana. Sou Rhainav. Vi você em meus sonhos.

- Como eu poderia estar em seus sonhos se nunca nos vimos? - Minha mãe me disse, uma vez, que nós só podemos sonhar com aqueles que vimos, mesmo que por um breve momento. Mas eu passei pouco tempo convivendo em civilização e lembraria se tivesse encontrado alguém como ela.

- Nós somos de certa forma, iguais. Você reconhece pessoas que nunca viu, eu também. - Respondeu ela, suavemente. Seu rosto esboçava uma certa timidez, mas a sensação era de que a qualquer momento ela fosse revelar um segredo profundo.

Rhainav sentou-se em uma pedra próxima a mim e recolheu um pequeno galho murcho. Logo em seguida, perguntou-me:

- Há quanto tempo está morando aqui?

- Eu não moro aqui, eu apenas vivo aqui. - Retruquei. Me incomodava o fato de que humanos precisavam morar e não apenas viver em determinado local, como os animais. - Como foi o seu sonho? Onde eu estava? O que eu estava fazendo?

- PaeSenRor. Perdão. Eu vi você criança, com sua mãe, correndo de um homem, mas estava tudo muito borrado e eu não pude entender quem era e por que vocês corriam. Na noite seguinte, vi cabelos caídos no chão e lágrimas, e então vi você nesse rio. Não foi muito difícil encontrar sua casa.

De fato, não era muito difícil encontrar minha casa após chegar até o rio, pois eram poucas árvores daqui até lá. E eu me preocuparia com isso se já não estivesse assustada o bastante com o fato de aquela mulher ter sonhado com o que aconteceu em minha infância. Ninguém sabia disso, além de eu e minha mãe. Ninguém nos viu após aquele incidente. Ninguém lembra de nós.

- Preciso que me conte o que houve, talvez eu possa ajudar sua mãe. - Rhainav me olhou firme enquanto pronunciava essas palavras e a vibração sonora fazia lembrar um trovão.

- Minha mãe não está doente...

- O cabelo. - Retrucou séria.

Estremeci. Há muito tempo eu não conversava com outro humano, e nunca havia conversado sobre o meu passado. O peso disso me acompanhou por anos, então decidi contar tudo. Não por ela ter sonhado comigo ou por saber sobre o cabelo da minha mãe, mas por que eu precisava desabafar.

- Eu não sei como começou e nem quando, mas eu tinha 12 anos quando percebi. Meu pai trabalhava tirando caixas e colocando caixas em caminhões, eu não lembro qual o nome dessa profissão... Ele chegava em casa à noite para jantar com a família. Eu e minha mãe. Mas ele nunca conversava com ela, sabe? Ele sequer olhava pra ela, a não ser quando estava com raiva. Em algumas noites ele chegava após o jantar e se trancava com ela no quarto, eu não sabia o que acontecia, mas eu podia ouvir minha mãe chorando e em algumas madrugadas eu a ouvia chorando na cozinha, mas eu não sabia o que fazer... Eu não tinha coragem para levantar. Depois de um tempo ficou frequente, ele sempre chegava bêbado e zangado, e quando não gostava da comida, derramava no chão, algumas vezes jogava nela. Se ela estivesse com o cabelo muito longo ele cortava, e se ela não o obedecesse, ele batia. E ele era forte, e grande. - Engasguei, por um momento todo o pavor que eu sentia quando ele chegava em casa, veio à tona. O nó na garganta e o calafrio, eu não sentia isso há muito tempo. - Minha mãe já pediu ajuda e quis separar-se, mesmo que não tivesse dinheiro para o próprio sustento, mas as pessoas também tinham medo dele, e contaram. Ele bateu tanto nela quando chegou que ela não teve coragem de agir outra vez...

- Vocês correram dele em algum momento? - Perguntou Rhainav, baixinho.

- Não, nós não tínhamos coragem, sabíamos que seria pior. Muitas vezes nos escondemos, mas nunca corremos... - Suspirei, e continuei. - As crianças da escola caçoavam de mim, por eu ser magra demais então eu parei de ir à escola e passei mais tempo com minha mãe em casa, até que um dia, arrumando a casa eu achei um alvo, mas ao invés de dardos eram facas, e por diversão comecei a praticar escondida. Depois fui descobrir que era da minha mãe, mas isso foi depois que tudo aconteceu...

Eu não tinha sentido as lágrimas em meu rosto, até que parei de falar, e meu coração estava em chamas, ao mesmo tempo que parecia estar prestes a explodir. Tentei desviar meu olhar para o lago, mas o laranja do céu refletido na água só me fez sentir mais melancolia. Então olhei para uma grande árvore à minha esquerda, tentando me distrair com alguma coisa, me perdi por uns segundos em sua grandiosidade. Eu queria encontrar forças para continuar, queria pela primeira vez, colocar tudo pra fora, mesmo que para os ouvido de um estranho.

- Ele voltava cada vez mais agressivo e teve uma noite em que ele chegou mais cedo, e ela ainda terminando o jantar. Ele gritou que sentia fome e começou a xingar, depois foi para o quarto. Nós chegamos a acreditar que ele tinha se acalmado, mas ele voltou com uma tesoura e álcool, e a fez cheirar álcool até passar mal, enquanto cortava seu cabelo. Ele perdeu a paciência quando ela começou a reagir, se debatendo, e tentou enforcar ela com as mãos... Eu achei que eu fosse perder minha mãe, eu a vi se esvaindo diante dos meus olhos, aí eu... Eu senti uma força em mim, que veio com coragem... - Eu sentia cada palavra que estava falando, e senti também a tristeza que estava sentindo agora à pouco transformar-se em raiva, ódio, voracidade... - Eu joguei uma das facas pra ela, e ela pegou, quando ele percebeu tentou tomar dela, eu me desesperei e enfiei todas as outras nas costas dele, e caí no chão... Eu lembro que tremia muito e que minha mãe enfiou a outra no peito dele também. Depois só lembro de momentos manchados, nós recolhemos todos os alimentos, pegamos uns lençóis que estavam em cima do sofá e corremos, enquanto ele agonizava no chão... Foi tudo muito rápido... Nós corremos para o mais longe possível, e paramos aqui, no meio da floresta. Corremos por horas, mas eu não sentia meu corpo, eu não sentia nada... Eu lembro disso, de não sentir nada enquanto corríamos muito...

Rhainav me olhou firme, com lágrimas nos olhos e segurou minha mão, mas a sensação foi de ser abraçada. Eu sentia como se tivesse acabado de tirar um peso extremo que carreguei por tanto tempo que não sabia que estava ali. Senti como se eu pudesse sair voando a qualquer momento. Fui interrompida depois de um tempo pela voz doce de Rhainav.

- Os humanos não acreditam em magia. Eles acreditam em Deuses mas não em magia, isso ainda é difícil de entender. Venho de uma terra distante onde a magia corre em nossas veias de modo tão forte que novas coisas físicas se criam, coisas inimagináveis aqui. Mas há magia em qualquer lugar, não muito aqui, onde ela é ignorada, mas há. Nossas palavras e atitudes são repletas de magia, qualquer energia que direcionamos ao outro, é magia. Tenho que dizer-te, que o cabelo de sua mãe há muito tempo está amaldiçoado. Toda a raiva que seu pai direcionou ao cabelo dela, fixou-se de tal forma que ele parou de crescer. Isso é magia.

TURKAYSIENWhere stories live. Discover now