UM - Parte 3

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Me sinto uma personagem clichê de um filme de terror perguntando isso, mas é a única coisa que consigo fazer. O portão estava trancado, com a corrente e o cadeado exatamente do jeito que deixei. A porta também estava trancada. Tá, tem uma janela quebrada em algum lugar, então não é impossível que alguém tenha pulado o muro ou o portão ou... Eu nem sei o que tem nos fundos da propriedade. Mas não é impossível que alguém tenha entrado aqui.

Mas é impossível que alguém tenha limpado tudo isso no tempo que gastei para ir na padaria.

Ninguém me responde. Eu não sei o que é pior: o silêncio ou se alguém tivesse respondido. Vó, o que foi que você me arrumou?

E ficar parada na porta não vai adiantar nada. Certo. Não tem ninguém aqui. Não tem como ter alguém aqui, porque é humanamente impossível limpar isso tudo nesse tempo.

Vó, você me mandou para uma casa assombrada? É isso?

Isso explicaria por que ela nunca fez nada com a casa e...

Respiro fundo. Não. Chega. Vamos parar por aqui antes de viajar demais. Tem que ter alguma explicação. Devo ter achado que tinha mais poeira por causa da impressão toda de abandono. Se bem que isso só serviria de explicação se alguém tivesse entrado aqui e limpado a jato e...

Eu não vou pensar nisso. Não vou. Então a casa está limpa. Ótimo. Menos trabalho para mim – menos gastos para mim, porque com o tamanho desse lugar eu vou precisar pagar alguém de qualquer forma. E isso sendo que nem vi a situação do terceiro andar e acho que ainda tem um sótão.

Se bem que, se a casa for assombrada e os fantasmas só fizerem a faxina por mim, definitivamente não vou reclamar.

Ai meu Deus, chega.

Respiro fundo e vou para a cozinha. Preciso comer. Isso. É uma explicação. Isso tudo é falta de comida. Bem possível. Um café agora também iria bem, mas ainda estou sem fogão, então... Pão com presunto e só. Melhor que nada.

A cozinha também é grande – isso eu já esperava, considerando que esse lugar era uma hospedaria – com uma porta de correr de madeira que a separa do salão de jantar. Certo, e eu preciso de internet para conseguir pesquisar como chamar os cômodos dessa casa. Tem um balcão comprido no meio do cômodo, e do outro lado está a pia, com uma bancada enorme, armários e espaços para colocar o fogão e a geladeira. E o espaço do balcão até a pia é quase do tamanho do meu quarto, na cidade.

Abro um dos pães com as mãos, coloco duas fatias de apresuntado e começo a comer, me apoiando no balcão. Se eu conseguir banquetas altas para isso aqui, não preciso me preocupar com mesas tão cedo. Se bem que eu acho que vi mesas empilhadas no canto do salão de jantar. Tenho que conferir isso, mas vai ficar para depois. E, numa cozinha assim, até eu posso tomar gosto em cozinhar. Muito melhor que aquele espaço minúsculo do meu apartamento, que a cozinha era tão pequena que preferi colocar a geladeira na sala.

É loucura. Eu nunca fiz nada assim, por minha conta, e agora estou aqui, com a ideia de restaurar essa casa gigante e voltar a abrir a hospedaria. Loucura, loucura, loucura. Não faço a menor ideia de como isso funcionaria nem nada do tipo. Quando minha avó deu a sugestão, aceitei sem pensar muito, porque qualquer coisa era melhor que continuar na cidade. Mas agora que estou aqui...

Devia ter pensado melhor. Ou ao menos pesquisado um pouco antes de pegar estrada, porque isso aqui é tão fim do mundo que nem a internet do meu celular pega. Pelo menos tenho sinal para fazer ligações, se for o caso. Quer dizer, acho que tenho. Só espero que seja um daqueles casos de uma operadora sem sinal na região e não um caso de não tem sinal de nada de internet aqui.

Tiro mais um pão de dentro da sacola e olho ao redor. É loucura, mas eu vou fazer isso. Até consigo visualizar essa cozinha arrumada... E isso me lembra que minha avó avisou que ela deixou quase tudo para trás, então não vou gastar uma fortuna comprando coisas para a cozinha. Só preciso descobrir onde tudo está.

Dou um pulo quando escuto uma buzina. Ainda está cedo, mas...

Corro para a porta. O caminhão da mudança está parado no portão. Certo. Eu devia ter pensado nisso, também. E... Tá, o jardim é um matagal, agora, e só tem um caminho que dá para uma pessoa passar a pé, mas imagino que antes dava passagem para carros... E se não dava agora vai dar. Vou ter que refazer isso tudo, de qualquer forma.

Praticamente corro até o portão e abro o cadeado, puxando o portão duplo primeiro para um lado e depois para o outro.

— Bom dia, Vanessa! — O motorista quase grita, encarando o matagal.

— Dia. Pode passar por cima da grama mesmo e parar na porta.

Ele não responde. Saio para o lado e deixo o caminhão passar, antes de fechar o portão e ir atrás deles. Paranoia, talvez. Mas não vou deixar tudo aqui aberto de jeito nenhum.

Preciso fazer um esforço para me lembrar do nome do motorista. Bruno. Acho que é isso. Entrei em contato com tantas empresas de mudança que está tudo misturado na minha cabeça.

Quando chego na porta da casa, o caminhão já está aberto e os mesmos dois rapazes que carregaram as coisas quando saí do meu apartamento estão conversando com Bruno.

— Vocês chegaram cedo — falo.

— Estrada vazia — Bruno conta. — Achei que fosse demorar mais umas duas horas, mas assim que passamos da serra não tinha nem sinal de trânsito.

É, eu notei a mesma coisa quando estava no ônibus vindo para cá.

— Onde é para colocarmos as coisas? — Um dos rapazes pergunta. — Essa casa...

— É enorme. — Assinto e olho para dentro. O primeiro andar está limpo, mas acho que o segundo andar ainda está sujo. Espero que esteja. — Vou mostrar onde é a cozinha. O resto das coisas, podem deixar aqui no saguão mesmo que depois vejo como vou fazer.

— Certo. Montar aqui também?

Assinto no piloto automático. Não sei se isso é uma boa ideia, mas não tenho nada muito pesado e acho que vai ser mais fácil – e mais barato – achar alguém para me ajudar a carregar tudo para o lugar certo depois do que achar alguém para montar tudo no lugar. Sem mencionar que quando contratei a empresa de mudança, montagem e desmontagem de móveis já estavam inclusos no pacote.

Normalmente, isso é o tipo de coisa que eu não pagaria. Melhor gastar uma semana brigando para conseguir montar tudo e economizar um bocado. Mas mudança de um estado para o outro não é tão simples assim... Sair de Belo Horizonte para uma cidadezinha esquecida do Espírito Santo já começou mais caro do que eu esperava, mas já que ia precisar pagar um "pacote completo" para uma mudança dessas, eu vou deixar eles se virarem com a montagem, sim.

Me sento no degrau mais baixo da escada e me apoio na parede, só assistindo enquanto eles começam a tirar minhas coisas do caminhão. Casa. Assombrada ou não, agora essa é a minha casa.

E não vou negar que estou com medo de subir para o andar de cima e descobrir que ele está misteriosamente limpo, também.

***

N.A.: suborno encerrado. Estou me dando créditos para ser a louca viciada no jogo essa semana :v HUAHSUAUHSAUHSAUHUHSAUHSUHA

Sombra e Luar (Entre os Véus 1) - DEGUSTAÇÃOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora