Alguém

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Querida Alguém,

Lembro-me da primeira vez que a vi. Eu estava sentado atrás de você naquela aula de Historiografia, perto da janela e sentindo a brisa do outono direto na minha face. Podia ver sua nuca muito bem daquela distância, os fiozinhos rebeldes e pretos saltando no seu penteado, mas sem que tirassem o restante do lugar. Embora eu quisesse mirá-la nos olhos, contentava-me em ficar atrás de ti.

Eu estava curioso para olhar o resto. Assim que você se levantou para tirar dúvidas com o professor no final da aula, encarei-lhe com vivacidade. Ali, tirei a conclusão que você era a minha musa inspiradora, que estamparia meus sonhos mais tarde. Sua pele era mogno, lustruosa e forte, realçando os olhos castanhos tão brilhosos quanto a aurora. Eu estava encantado com a sua aparência: o colete jeans cheio de bottons, a calça de moletom despojada e estudantil, o tênis surrado. Interessantemente minha.

Eu soube que ficaria com sua imagem por muito tempo na cabeça até reencontrá-la de novo. Então, na semana seguinte, pude ouvir sua voz pela primeira vez. Sei lá como posso descrever o som, porque era unicamente especial. Se eu fosse tentar, diria que me lembrava o jazz e o blues, o ermo, a praia, a areia, a felicidade pura. Para completar, você ainda riu! Não preciso nem dizer que meu coração desmorou, não é?

Eu queria de verdade ter coragem de chegar em você, porque havia sonhado contigo umas três noites seguidas. Claro que eu não diria isso, senão você pensaria que eu era um stalker ou qualquer assim. Mas eu tive tanta vontade de, pelo menos, exaltar suas qualidades. Eu só queria que você me notasse uma única vez, apesar de não ser o tipo de cara que você provavelmente saía. Por mais clichê que fosse, eu era o nerd estereotipado do Ensino Médio e você, bem, você era a líder de torcida cheia de atitude.

Então você esbarrou em mim. Eu estava entrando na sala de aula, um pouco atrasado e sem pensar muito nos meus passos, porque queria entrar logo. Por coincidência, você também estava atrasada e andava tão rápido quanto eu, trombando no meu ombro. Paramos de repente perto da porta, ambos muito constrangidos com a cena — mas eu ainda pior, porque você havia me tocado pela primeira vez!

— Desculpa — você falou, risonha.

Eu não consegui formular nenhuma palavra. Eu só estava boquiaberto demais. Você era a águia poderosa, enquanto eu era uma pomba. O que eu poderia dizer para igualar seu mágico "desculpa"? Só fiquei parado e tenso, encarando-lhe como se não soubesse falar.

Você deve ter pensado que eu era um retardado. Talvez eu seja, no final das contas, porque depois desse dia quase não conseguia encará-la de perto mais. Antes, cumprimentávamos-nos sutilmente com um aceno de cabeça. Mas, naqueles tempos, meu nervosismo era tanto que me fazia correr toda a vez que eu a via se aproximar. Às vezes ficava tão difícil entrar na mesma sala que você, porque eu sabia que você lembrava de mim.

Mas eu não queria ser notado? Por que me sentia tão abalado quando você se aproximava?

Depois do período tenso daquele semestre, pela primeira vez tive a coragem de sentar na mesma mesa que você no refeitório. Acho que, após tanto tempo te evitando, você já não se lembrava de mim, porque eu acomodei na sua frente e você me olhou como se nunca me houvesse visto antes.

— Oi — falei. Eu estava muito feliz que minha voz sequer travou. Diferentemente do meu interior, eu até que estava parecendo confiante.

Você estava sentada ao lado de duas amigas. Eu não prestava atenção nelas, mas fui educado o bastante para cumprimentá-las também. Havia me sentado ali só porque não havia outras mesas disponíveis. Felizmente vocês não se importaram, pois me incluíram na conversa sem frescuras. Todas pareciam modelos de capas de revistas, daquelas que eu evitava há alguns anos, mas eu já estava me sentindo à vontade.

— Você faz História? — uma das meninas perguntou.

— Sim. Eu fiz Historiografia contigo — apontei para você, que me olhou surpresa, porém animada.

— Sério? Eu não lembro!

— Uma vez eu esbarrei em você na porta da aula. Eu fiquei com vergonha, mas acho que já superei, visto que você sequer lembra — ri baixinho, tentando não encará-la muito.

Mas você não tirava seus olhos faiscantes de mim.

— Ah, eu me lembro disso! Então era você?

— Acho que sim.

— E depois disso você desapareceu?

— Só a evitei.

— Por quê?

Sua indagação me cortou a alma. Eu podia enxergá-la na segunda camada e notar que uma zombaria estava crescendo em seu peito. Precisei rir mais uma vez, porque provavelmente você estava fazendo o mesmo no seu interior.

— Eu estava com vergonha.

As outras meninas riram. Inclusive uma delas balançou seu ombro de leve, brincando com a situação. Elas haviam percebido meu interesse, pois ele devia ter gritado na minha cara.

Relembrando disso, eu deveria ter feito diferente. Levado sua bandeja comigo e perguntado sobre sua grade daquele semestre; acompanhá-la até sua próxima aula; pedido seu número na tentativa chamá-la para sair no final de semana. Qualquer coisa que não afundasse nossa possível amizade.

Eu não queria que houvéssemos nos conhecido no último ano da faculdade. Depois da conversa no refeitório, mesmo que trocássemos olhares e risinhos pelos corredores, nunca mais falamos de novo. Tivemos nossa graduação e cada um seguiu para o seu lado, sem nenhuma despedida dramática.

Mas, por favor, eu desejo que saiba que mudaria isso se conseguisse. Poucos meses depois, descobri pelo Facebook que você havia se mudado para São Paulo para trabalhar em um museu. Eu gostaria de ir junto, sabe? Pelo menos para ter a sorte de esbarrar contigo novamente em qualquer lugar. Infelizmente permeti que você fosse embora sem ao menos deixá-la ciente daquilo que meu interior guardava. Seria diferente se eu houvesse dito alguma coisa?

Eu estava desencorajado. Algo pulsava dentro de mim, impedindo que minhas forças positivas atuassem. Eu estava me sabotando sem saber, porque depois de um ano longe, o sentimento não havia evaporado. Logo depois, você mudou seu relacionamento no Facebook e assumiu o namoro com um tal de Murilo Albuquerque. Então eu não podia dizer mais nada. Engoli o que sentia, porque seria em vão falar algo, agora que havia definitivamente te perdido.

Eu deveria aprender uma lição com isso. Se eu não falei algo, outra pessoa teve a minha coragem. E eu podia culpá-lo? Claro que não!

Por que não podia ser simples? Por que eu não nunca enviei uma mensagem em alguma rede social? Por que eu não a elogiei em alguma foto e iniciei uma conversa a partir dali? Por que eu não peguei um ônibus para sua cidade para convidá-la a experimentar cervejas artesanais comigo?

Por que eu não podia enviar essa carta?

Bom, acho que nunca vou ficar sabendo. Mas foi uma honra poder conhecê-la e usufruir desse sentimento tão puro.

Amorosamente,

outro Alguém.

Cartas de amor nunca entreguesWhere stories live. Discover now