Capítulo 1

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"Asas cortadas, eu era uma coisa quebrada
Eu tinha voz, mas não conseguia cantar
(...)
Eu luto para voar agora.
(...)
Eu grito como um pássaro livre."
Birds set free - Sia

"Birds set free - Sia

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NAYARA

O que poucos sabiam era que, por trás das cortinas do circo, o encanto sumia. A postura confiante e o sorriso aberto também eram guardados para a próxima encenação e a vida normal voltava, medíocre e ordinária.

— Nayara!

— O que foi? — Respondi, seca.

— Nayara, você não vai acreditar! Alguém vomitou perto dos trailers, ninguém merece dormir perto daquela imundície. Até parece que somos porcos! — Andy, uma das dançarinas, acompanhava meus passos ligeiros em direção ao camarim.

— E o que eu tenho a ver com isso, Andy? — Não olhei para ela.

Andy era uma ratazana procurando o queijo dos outros.

— Odete mandou eu pedir para você limpar, já que seu número já encerrou por hoje — disse, com superioridade.

Era obvio que a tarefa seria minha, não sei porque me dei o direito de sonhar.

Eu não respondi. Entrei no camarim vazio para tirar o maiô e enfaixar meus punhos com a gaze. Enquanto retirava a maquiagem do rosto, um grupo entrou alegre na sala, rindo e gritando.

Eu não suportava aquela felicidade. Comecei a tirar a pintura do rosto com violência. O pior é que limpar vomito não estava nem no top dez de coisas mais difíceis que eu já precisei fazer.

E eu fazia, calada, porque conhecia as consequências de desobedecer Odete.

Minha madrasta botava medo até mesmo no demônio.

Então eu fiz meu serviço. Limpei o chão de concreto com um balde, calada, interrompendo cada palavrão que subia à garganta com a força do ódio.

Quando eu terminei, o espetáculo já estava no fim e as últimas pessoas deixavam o circo. Era uma questão de tempo até todo mundo se reunir e festejar os lucros da noite. Eu nunca participava. Por falta de convite, sim, mas também porque preferia estar à espreita, dentro do trailer, esperando que todos fossem dormir.

Meu lugar era onde todo mundo jogava suas tralhas, mas eu não me importava, tinha a privacidade que precisava para não enlouquecer. Se fosse obrigada a dividir uma lata de sardinhas como essa com algum daqueles babacas presunçosos, cometeria um assassinato. Eu já tinha que suportar eles durante as apresentações e era o bastante.

Eu era excluída, mas fazia questão de ser. Os treinos coletivos eram meu inferno de infância. Hoje em dia, quando a última porta do último trailer se fecha, é minha hora de treinar. Sem gente para atrapalhar, sem comentários idiotas ou cochichos maldosos. Apenas eu, sozinha no palco parcialmente escuro. Há anos faço assim.

Deixa Queimar (Degustação)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora