Flagellum II (conto)

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Em momento de ternura, ao resfriamento da excitação para dar espaço à carência, estiveram unidos. Partilhavam do toque e da carícia, sem nenhuma ambição senão sentir um ao outro. Cabelos suados, respirações densas. A penumbra de traços avermelhados banhava a vastidão do quarto enquanto o lençol os envolvia. Os corpos ardiam por fora, e um palmo os distanciava.

Havia uma perfeição traiçoeira na compatibilidade.

Havia também pensamentos, entre ambos, além de desejos e suspiros. Pensamentos esses mais íntimos que a própria nueza do sexo.

Banindo o silêncio, a voz rouca e cansada lhe sussurrou:

-- De que sente falta?

Simples e esmagadora pergunta.

Ele não se dera conta da imensidão que essas palavras juntas representavam, até que sua própria mente ouvira o eco.

Mas já era tarde, e ela se retraiu com a face no travesseiro.

Podia ser vergonha, podia ser medo. Independentemente, lágrimas emergiram para untar sua face já borrada.

E o pior e mais cruel; ele já sabia a resposta.

-- Queria sempre ter alguém para me abraçar e dizer que tudo ficará... bem. -- Ela continuaria dizendo, entre outras muitas verdades que lhe rasgavam, mas deixou sua aura falar por si.

E a culpa que recaiu sobre ele, fez-lhe lacrimejar ao seu lado.

Eram almas desnudas, sensíveis a qualquer oscilação. Queria segurá-la naquele momento, segurá-la para si. Mas havia um espaço, entre eles, entre tudo...

-- Onde há conforto quando as expectativas lhe traem e a paz lhe é roubada? -- Ele ajeitou-se encarando os detalhes que sumiam na escuridão, permitindo as gotas salgadas atravessarem seu rosto por ambos os lados. Era quase impensável lembrar que há minutos atrás exploravam as fantasias impuras um do outro, sem pudor.

Responder perguntas com outras. Delicado. Arriscado. Infrutífero.

Poderiam jorrar lágrimas sem encontrar qualquer resposta.

Os asfixiantes sentimentos os compeliam a acreditar que as carências, as necessidades carnais e emocionais, se preencheriam mutuamente. Era a promessa, quase divina, após tanta agressão do passado em suas vidas. Mereciam-se e se desejavam com todas as forças, e mesmo assim, era inviável.

Ela, ainda de bruços, virou-se para ele na penumbra com o pálido olhar marejado. Parte de seu rosto se ocultava no tecido.

Ele, de peito nu para cima, tombou a cabeça a girando sobre o cabelo para encontrar os olhos dela.

A Insaciável e o Cruel, era como se viam e se atraiam. Contudo, não naquele momento. Poderiam se encontrar sempre ali, só ali, em um ponto e instante singular em que nada existia além deles. E esta era a maldição por terem se conhecido. Era o que lhes presenteavam com lágrimas.

Mais que tudo ansiavam entregar sentimentos, regurgitar emoções, mas nem mesmo o toque da pele era satisfatório mais.

Hesitavam.

O universo brinca impiedosamente com o destino, e o destino os castigava, entregando um ao outro.

-- Quando a confiança é perdida? Quando o medo impede a verdadeira expressão? -- Ela fora retórica.

-- Como saber se o impedimento das palavras é voluntário, ou apenas medo puro que nos censura? -- Ele fora sincero.

Desejava consolá-lo.

Desejava confortá-la.

Desejavam, verdadeiramente, em demasia. Sabiam mesmo assim que nunca seria o bastante... amar era uma condição impossível.

Fitaram-se por tanto tempo quanto quiseram, sem nada fazer.

Por fim, ele quebrou o elo miserável, desvencilhando das íris dela, despertando de um feitiço. Sentou-se na beira da cama, de costas a ela, e suspirou. Virou o rosto só para entregar o último olhar incompleto e levantou, caminhando despido para dentro do escuro, onde o contorno de uma porta fazia-se. Entre os últimos passos e o instante que tocara na saída, sua silhueta se diluiu ao ar como uma sombra sendo evaporada, e até mesmo a porta deixara de ter uma forma tangível.

De bruços na solidão, ela se apoiou com mais lágrimas até a janela que trazia escassa luz vermelha. O mundo que havia, para cima, para baixo, as muitas colunas incomensuráveis, as incontáveis janelas de vivências irreais, desmanchava-se. Aquele plano único de existência voltava ao vazio, desmontando-se das bordas, das arestas, do exterior, até ela, a última forma a desfazer-se.

RandômicosWhere stories live. Discover now