Capítulo I - A Mulher da Rodoviária

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Era julho de 1986.

Uma manhã suave começava a se levantar com a dança dos primeiros raios de sol. A estrela estava pedindo licença e solicitando à velha amiga que fosse descansar. Era um mês onde o calor ensaiava a sinfonia histérica dos seguintes; contudo, às seis da manhã, corria uma brisa leve na rodoviária da histórica Oeiras, no sul do Piauí — àquela época, toda decorada com desenhos desproporcionais das atrações turísticas locais, como se feitos por um artista etílico.

Localizada no semiárido, a cidade despertava com os raios solares que namoravam com os paralelepípedos.

Gradualmente, o amarelo inundava o pequeno terminal. A aurora, assim, se fazia intrometida e desobediente, anunciando um dia que chegava. Mas a luz ainda brigava com as trevas. A meia-penumbra do terminal, portanto, justificava as luzes, ainda acesas, que ofuscavam os olhos dos presentes — há pouco despertos; sendo, pois, palco de um verdadeiro festival de bocejos, ornados por rostos cercados por cabelos assanhados.

Oeiras há muito deixara de ser a capital, mas ainda continha todas as nuances da política de cidade pequena, com as suas autoridades caricatas e populares engajados e entusiasmados.

A urbe ainda estava coberta pelo lençol do silêncio. Somente três viventes cruzavam as ruas, despercebidos. Alice os conhecia: o padre Alfredo, que passava apressado, saindo da casa paroquial para a igreja; seu Lima da farmácia e Tomás, o vendedor de pão, com sua inconfundível monareta azul, carregando um enorme cesto.

Era o início das férias escolares, e o terminal estava cheio.

Assim como a farda dos alunos, a rodoviária era azul. Os mais caluniosos viam, ali, uma propaganda subliminar, na medida em que era a cor da administração do município; outros, partidários da situação, apontavam uma grande coincidência, pois era a cor do manto da virgem.

Com o olhar sonolento, Alice observava uma família barulhenta que havia acabado de chegar, encolhendo-se e se abraçando, por conta de um calafrio que lhe percorreu a espinha.

Uma mulher bradava com cinco crianças, sujas e assanhadas — que pareciam ser seus filhos. O grupo não tinha malas ou mochilas, mas sacolas. Era como levavam tudo. A menina Alice e sua tia também as tinham, mas somadas às malas e às mochilas.

A família, de aspecto desolado, não chamava a atenção pelo barulho da mãe, mas, sobretudo, pelo silêncio daqueles olhos. Havia uma aura triste ao redor daquelas crianças. Pareciam sem ânimo, totalmente desprovidas de vivacidade.

Esticando o pescoço, a mulher averiguou se o ônibus tinha chegado.

— Eu não quero ver nenhum menino dando trabalho. Fiquem quietinhos! Ou nós nos entenderemos lá em casa. Fui compreendida?

Entre o pavor e a resignação, a trupe de apáticas crianças, em uníssono, apressou-se em responder:

— Sim!

A menina, que parecia a mais velha, organizava os irmãos em uma pretensa fila. Aparentava ter catorze anos, com cabelos loiros de madeixas judiadas, pele morena fosca, suja e olhos lamuriosos.

“Por aqui...”

Observou o olhar curioso de Alice e, constrangida, abaixou a cabeça. A criança menor, parecendo tirar remela dos olhos, choramingou estar com fome. No que a mulher, de aspecto sofrido, olhando raivosamente, retirou uma fatia de bolo de uma sacola e disse:

“Toma, Cão! Diabo! Parece que cria um bicho no bucho. Oh, fome da peste!”

A mulher concedeu o mantimento como se fosse caridade.

A menina, com o olhar brilhando de felicidade, pegou afoitamente a fatia de bolo e a devorou imediatamente; umedecendo-a com um fio de catarro que lhe saía do nariz. Era o primeiro "quebra-jejum" em dias.
Foi de lamento e piedade o olhar de Alice para aquela frágil menina. Lamentou ela não ter uma mãe como a sua, doce e gentil. Nada podia fazer. Envolveu-se numa toalha verde, com o desenho do Cebolinha.

Sua tia Rita conferia o conteúdo das sacolas, ao tempo em que bocejava, pela trigésima vez. Era uma pessoa agradável, mas meio paranóica. Olhou para a sobrinha e perguntou:

— Trouxe tudo, Alice?
A menina fez menção de procurar na mochila, mas se deteve, colocando o dedo no queixo e, lambendo as memórias, declarou:

— Sim, está tudo aqui, tia.
A tia fez uma cara de incredulidade e disse:

— Olha lá, mocinha! Da última vez, você esqueceu a escova de dentes. Foi um trabalhão encontrar outra. Tive que ir à Santa Cruz. Imagina? No "solzão" de uma hora. Nunca mais! Eu nem tenho filhos.

A tia de Alice era uma solteirona convicta de trinta e cinco anos. Orgulhava-se disso. Dizia que marido "Só servia pra rédea", ao contrário de Emília, sua irmã, mãe da menina.
A repreenda da tia não a abalou. A menina até debochou:

— Ah! Tia, a senhora deve ter arrumado uns dois namorados!

De imediato, Rita ficou vermelha de ódio e fulminou Alice com um olhar grave, limitando-se a emitir um grunhido:

— Hum!

O ônibus chegou.

Logo os futuros passageiros se amontoaram ao redor do veículo.

Enquanto sua tia entregava as bagagens ao motorista, a menina Alice contemplou a triste família.

— Vamos, Alice! — Rita ordenou.

— V-Vamos…

Subiram.

A tia se sentou na poltrona adjacente, mas com o corredor no meio, não imediatamente ao lado, deixando Alice sozinha.
Sendo uma mulher metódica, Rita sempre seguia o que a passagem discriminava, e era esta a ordem apontada.
Foi quando a família barulhenta entrou; só as crianças.

Tão logo ocuparam os assentos vazios, restava somente a menina menor, que ocupou o único lugar faltante — ao lado de Alice.

Um solavanco indicou que o ônibus começara a andar.

— Eita! Sua mãe vai ficar! — Alice bradou, segurando-se com força e levantando-se para olhar pela janela.

A menina olhou calmamente para Alice e, com um tom que aparentava indiferença, declarou:

— Mãe? Meus pais morreram num incêndio...

— E aquela mulher?... É sua tia?

— Que mulher?  

Re(Existir) Where stories live. Discover now