Cuidado

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Enrolei o macarrão no garfo sem vontade de comer.

— Quer queijo?

— Não precisa.

Coloquei a massa na boca, mastigando o menos possível. Engoli mais algumas garfadas, me levantei da mesa e joguei o resto da comida no lixo.

Ela se levantou, me seguiu até a cozinha e pegou o prato e o garfo da minha mão. — Deixa que eu lavo.

Eu deixei. Fui pro meu quarto, abri o notebook, coloquei os fones de ouvido e vez ou outra, os tirava pra ter certeza que estava tudo ok. Ela via TV baixinho e tossia vez ou outra. Quando deu vinte e duas horas no relógio, eu perguntei, do quarto mesmo, se ela não ia dormir. Ela resmungou que já ia. Eu esperei até ouvir o barulho de seus passos arrastados e a porta do seu quarto sendo encostada.

Só então eu respirei. Terminei o que tinha que fazer no computador e fui dormir também.

— Você vai me machucar? Tente! Encoste um dedo em mim e você vai se arrepender de ter nascido…

Acordei com a voz dela vindo do quarto ao lado. Entre xingamentos e ameaças, ouvi o barulho da cama e seus passos pelo corredor. Ela entrou no meu quarto de repente e me apontou uma faca.

— Você vai fazer o que eu mandar, tá me ouvindo? Ou então eu vou arrancar a sua língua!

Eu me levantei e tentei pegar a arma de suas mãos.

— Não se aproxime de mim, tá me ouvindo, você vai fazer o que eu mandar! — Ela fazia movimentos rápidos, esfaqueando o ar.

— Larga a faca...

— Você não vai mais me machucar.

— Ninguém vai te machucar...

— Eu vou cortar as suas mãos e a sua língua.

— Eu não vou te machucar...

Eu vou te machucar!

Ela avançou pra cima de mim e eu desviei, abraçando ela por trás, torcendo o seu braço até ela soltar a faca. Ela gritou comigo, dizendo que aquilo doía, mas só parou de lutar quando largou a faca. Eu ainda a abraçava com todas as minhas forças até que ela começou a chorar. Abrandei o abraço e fui levando ela pro quarto, ainda entre meus braços. Deitei ela na cama e quando ela percebeu que eu ia amarrar seus braços e pernas na cama, choramingou, prometeu que ia ser boazinha, que ia se comportar. Eu a amarrei mesmo assim, beijei sua testa e me levantei pra ir pro meu quarto.

— Não me faça roer os meus próprios pulsos.

Uma vez ela deslocou o pulso pra poder se soltar. Felizmente nunca chegou a roer um deles. Mas eu me dei por vencida e deitei do seu lado, abraçando seu pequeno corpo com um braço. Ela ficou quieta, sem olhar uma única vez pra mim, emburrada, até que adormeceu. Eu então me levantei, tomei o alprazolam fora de hora mesmo, e fui dormir no meu quarto.

Acordei com o sol alto e barulho de panelas. Levantei o mais rápido que consegui e lá estava ela, na cozinha, mexendo algo na frigideira.

— Boa tarde... Você dormiu um bocado. Tô fazendo o almoço. Vai lá lavar essa cara que já tá quase pronto.

— Como você conseguiu se soltar?

— Hum? — Ela estava com os pulsos machucados, mas se ela tivesse deslocado um deles, não ia conseguir nem segurar a colher. Ela experimentou seu cozido. — Mais sal. — e se afastou do fogão.

— Tá fazendo o quê? — Me aproximei e achei que era o sono, mas os grãos de arroz se mexiam. Percebi então que além do arroz, tinha vermes na frigideira. — Onde você pegou isso? — Disse tampando o nariz para evitar o cheiro de podre.

— Por que você tem sempre que ficar me criticando? — E tacou a colher em mim, com sal e tudo, sem muita força. Ontem ela tinha cozinhado minhocas pra mim.

Achei que ela ia começar a chorar, mas ela só saiu brava da cozinha. Peguei a frigideira, desliguei o fogo e joguei aquilo no lixo. Enchi a frigideira de água enquanto pensava no que fazer pra ela parar de achar que animais nojentos eram comestíveis quando senti uma facada no abdômen.

— Você não gosta da minha comida? Você prefere comer na rua? Os outros cuidam melhor de você?

— Mãe...

— Eu vou acabar com isso agora. Você vai se comportar feito mocinha.

— Mãe!

— E você vai aprender a gostar da minha comida.

Tentei tirar a faca de mim. Mesmo fraca e com dor, eu ainda era mais forte que ela. Mas eu precisava que ela soltasse a faca. — Mãe, o papai...

Ela olhou pra mim, com aquele olhos grandes cheio de veias vermelhas, tentando entender porque eu tinha invocado o cara que tanto eu quanto ela odiamos. Prendi a respiração, incerta se a distração tinha dado certo. Seu rosto se contorceu e ela gritou: — Eu vou matar esse filho da puta!

Ela então puxou a faca do meu abdômen e se virou em direção à porta. Nisso, eu peguei a frigideira e bati com todas as minhas forças na cabeça dela. Ela caiu, desacordada. Eu chutei a faca pra debaixo da geladeira e fui sangrando até meu quarto, pegar o celular. Enquanto a chamada pra ambulância era completada, pensei que a gente ia acabar se matando um dia.

898 palavras

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⏰ Last updated: Mar 31, 2019 ⏰

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