dois.

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Margo não tinha muitas coisas das quais gostasse e amasse em Sokovia. Sua mãe havia a abandonado assim que a criança nasceu, por não ter condições de criar alguém além de si mesma. Alessio descobriu a mulher alguns anos depois, quando a mesma apareceu na porta da casa de seus pais adotivos, dizendo que arrumara um bom emprego na Alemanha, e queria sua criança de volta.

Gentilmente, Margo — Alessio, não Khalil — recusou a oferta que lhe foi dada quando tinha apenas dezesseis anos.

Mas havia algo em especial que ela amava. Apesar de viver em uma família de classe média baixa de cinco pessoas — seus pais, dois irmãos mais velhos e uma avó —, suas condições eram melhores que a de muitas pessoas no resto de Sokovia. Seu pai sempre encontrava algum modo de preparar seu doce favorito. Rafael Alessio era filho de pais brasileiros e apresentou à sua família algo chamado brigadeiro. E, céus, Margo poderia jurar que seria impossível viver sem aquilo. Mas não se tratava apenas do doce, mas de seu preparo. Qualquer momento culinário entre os Alessio — embora sua mãe, Vero, fosse uma péssima cozinheira — se tornava uma grande diversão. E eram aqueles momentos os que ela mais apreciava.

Quando Margo despertou, estava em seu apartamento. Daquilo ela não tinha dúvidas, mas o lugar parecia diferente. Assustadoramente diferente. A mobília não era a mesma. Era, sem dúvida alguma, mais cara e sofisticada.

E havia o cheiro de brigadeiro. Doce, e nem um pouco enjoativo. Margo se levantou instantaneamente. Ninguém morava com ela, então como havia brigadeiro sendo feito? Ou melhor, como ela estava lá? Se lembrava-se bem, deveria estar em Titã, após o estalo de Thanos. Após uma luta que quase acabou com a vida de Tony, mas transformou em pó metade do universo. Quem, exatamente, das pessoas que ela conhecia havia sobrevivido, Alessio não saberia dizer. Mas torcera para que todos estivessem bem.

Mas ela não estava lá. Era o seu apartamento, com móveis que, teoricamente, eram seus, em uma Nova York tipicamente barulhenta para um dia de semana qualquer. A morena se levantou lentamente, sentindo uma dor nos mesmos locais que, em Titã, haviam ferimentos. Ferimentos que não existiam, mas lhe causavam uma dor que, por mais estranho que lhe parecesse, não parecia real. Era algo distante, mas incômodo.

E não era apenas seu quarto que parecia ter sido redecorado, mas toda a casa. Deveriam ter livros espalhados por cada canto, uma decoração com móveis semi-usados e considerávelmente velhos. Mas a mobília era nova, a pintura estava conservada e seu apartamento havia se tornado em um lugar irritantemente branco e organizado. Lembrava-a da antiga mansão de Tony. Margo pegou um livro grosso de uma estante, pronta para jogá-lo na cabeça de alguém.

Quando chegou na cozinha, não havia ninguém. Apenas uma panela no fogão ligado. Era o brigadeiro, que, a julgar apenas pelo cheiro, já estava no ponto perfeito. A morena se aproximou do fogão e o desligou. Embora sentisse a vontade de sair correndo, gritando que nada daquilo estava certo, ela permaneceu imóvel. Talvez aquilo se tratasse de um sonho realista demais.

Talvez suas próprias lembranças em Titã não passassem de um sonho realista demais. Talvez, quando visse Tony mais tarde, ele até mesmo riria da possibilidade de um titã louco e roxo acabar com metade dos seres vivos de todo o universo.

— Bom dia. — Uma voz masculina soou há alguns metros e, em um movimento automático, Margo arremessou o livro que, qualquer que fosse o seu alvo, foi acertado. — Ai! Droga, Margo, o que é isso?

Alessio sentiu os joelhos fraquejarem ao se virar e ver Steve Rogers, que passageava a própria cabeça, provavelmente onde o livro havia lhe atingido. Não disse uma palavra sequer. A cada segundo, a sensação de que algo estava extremamente errado parecia aumentar. Rogers não deveria estar ali. Alessio nem mesmo sabia onde ele deveria estar. Desde a última vez que ele aparecera em seu apartamento, ela nunca mais trocara uma única palavra com ele.

Mas lá estava ele, a olhando como se fosse louca. A barba estava ainda maior do que da última vez que o vira, e, embora o cabelo loiro estivesse jogado para trás, haviam algumas mechas lhe caindo sobre a testa. Sua expressão indicava que havia acordado há pouco tempo.

— O que você faz aqui? — Ela gaguejou, observando-o ir até o fogão.

— Bom, eu estava tentando fazer um brigadeiro para você, mas acho que alguém acordou naqueles dias. — Resmungou, pegando a panela e jogando o chocolate em uma vasilha de vidro. — Você e sua mania por livros com mais de quatrocentas páginas. Da próxima vez, lembre-me de escolher algo com, no máximo, duzentas.

— Steve — Margo respirou fundo duas ou três vezes antes de continuar. Sentia-se prestes a ter um colapso mental. — O que você faz assim?

— Você ainda está chateada, não é? — Rogers suspirou, desviando o olhar. Só então Margo notou um anel do dedo dele, uma aliança. E havia uma idêntica em sua mão. — Eu sei que ontem tivemos uma noite ruim, Margo, mas não precisamos mudar nada sobre isso, certo?

Steve disse algo a mais, mas ela não o ouviu. Estava fitando as alianças.

— Nós somos casados? — Perguntou, e viu Steve tomar uma expressão confusa em seu rosto.

— Há oito meses, sim. — Ele murmurou. — Você está bem?

Impossível. Eu não te vejo há mais de um ano. — Ela balançou a cabeça, incrédula. — Steve, você não é visto por ninguém há mais de um ano.

Houve um silêncio. Rogers se aproximou dela e pôs a mão em sua testa, checando a temperatura. Margo fez a menção de se afastar, mas bateu as costas na parede.

— Você está queimando em febre. — Ele observou. — Coloque uma roupa, Margo, vamos ao hospital.

— Por quê?!

— Como assim por quê?! — A voz de Steve estava calma, como sempre, mas ainda assim, seu desespero era nítido. — Você está agindo de forma estranha. Quero dizer, você realmente não se lembra do nosso casamento?

Margo mordeu o lábio. Havia sido uma grande besteira falar sobre a confusão de sua mente para alguém — mesmo que Steve — antes de tentar entender o que estava acontecendo. Ainda assim, a ideia de estar casada com Steve Rogers era irreal demais para que pudesse manter a naturalidade.

— Eu acho que... Talvez tenha sido um sonho. — Mentiu, desviando o olhar para o outro lado da cozinha. Nem mesmo tivera tempo para notar o quão limpa e organizada ela estava. — M-me desculpe, eu não queria te assustar.

— Tudo bem. — Ele suspirou, antes de abrir os braços e puxá-la para um abraço, beijando sua testa. Margo fechou os olhos, lembrando-se da última vez da qual se recordava daquele gesto. Na igreja, após o velório de Peggy Carter. — Eu te amo, certo? Não deixe de me falar se algo estiver errado.

— Eu também. — Gaguejou. Pensou por alguns segundos antes de continuar. — Steve, podemos ver o Tony hoje?

A testa de Rogers franziu em surpresa.

Stark?! Você tem certeza? — Margo assentiu, ainda que não entendesse a surpresa na expressão e no tom de voz de seu marido. — Certo. Saímos em uma hora, preciso resolver algo.

Ela o observou colocar a louça suja na pia. Era Steve ali, diante dela, dizendo-lhe que eram casados e que a amava.

E você, de quem precisa?, ela se recordou da voz de Rogers — se é que aquele Steve era o seu Steve — lhe perguntando, da última vez em que, teoricamente, haviam se visto.

— Steve — Ela o chamou, antes que ele pudesse sair da cozinha. Quando ele se aproximou, Alessio o puxou em mais um abraço forte. O tipo de abraço que ela desejou ter dado antes da luta entre os Vingadores, e que não teve a oportunidade de dar. O tipo de abraço que ela desejou por tanto tempo, sempre que via o maldito celular na mesa de Tony. — Eu preciso de você.

✓ veneno ── infinity warWhere stories live. Discover now