fim

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Carlos morreu comendo uma coxinha, razão pela qual seu primeiro pensamento no pós-vida fora "que anti climático". Ele não sabia exatamente do que morrera, mas isso não parecia lhe incomodar. É como quando estamos vivos e não nos interessa realmente saber porque razão nossos pais fizeram sexo para nos conceber; saber que estamos vivo já é o bastante – ou morto, no caso de Carlos. Sua alma ou espírito ou aura ou o que quer que seja que você acredite estava parada do lado de for a de seu corpo, observando como todos no bar sujo e precário da esquina corriam para tentar lhe ajudar. Inútil, ele pensou. Já estava morto e morto continuaria. Era triste que ele tivesse morrido ali, porém. Um lugarzinho afastado, que fedia a podridão e fracasso. Mas tinha a melhor coxinha da cidade. Se perguntou se sua mulher ficaria feliz ou triste com sua súbita partida forçada. Eles andavam tendo alguns problemas financeiros e o dinheiro do seguro seria muito bem vindo. Para ela, claro, porque Carlos estava morto e não precisava mais de dinheiro. Graças a Deus morrera cristão e não teria que dar uma moeda de ouro para aquele balseiro bastardo levá-lo até o Submundo de Hades ou Pluto ou seja lá que nome esse cara usava agora. Uma sorte, mesmo, que Deus não cobrasse nada pra levar ele pro Inferno. Era gente fina mesmo.

Carlos percebeu de repente que podia se mover mais ou menos como em sonhos. Bastava pensar no lugar em que queria estar e bang! Lá estava ele. Muito mais rápido e simples do que pegar um avião, e ele nem precisara acumular milhas para a viagem. Estar morto era muito mais simples do que estar vivo, Carlos se deu conta. Se soubesse disso, teria morrido antes. Ele se perguntou para onde iria, agora que podia ir para qualquer lugar. Sua casa passou brevemente pela sua mente, mas logo a descartou. Por que ir pra lá? Passou a maior parte da vida naquele lugar, não ia passar a maior parte da morte também! Piscou por um segundo e já não estava mais no bar barulhento com gritos e sirenes, mas sim na beira de uma praia. Semicerrou os olhos contra o sol, mais por hábito do que por real necessidade, tentando se recordar daquele lugar. Carlos bateu com a mão na testa ao se dar conta que passara alguma de suas férias de verão ali. Tinha uns sete ou oito anos na época, aquela idade em que tudo é maravilhoso (até viver, algo que com o passar do tempo se torna um fardo que mais se aguenta do que se aprecia). Estranho que seu subconsciente tivesse lhe levado lá, mas ele simplesmente deu de ombros, ouvindo o som da água batendo na areia. Olhou ao redor calmamente e percebeu uma cantina não muito afastado, à sua esquerda. Carlos bem que queria uma cerveja gelada agora. Aquela das propagandas que a filha mais velha sempre dizia serem machistas. Podiam até ser, mas Carlos achava a cerveja muito boa. Piscou outra vez e já se encontrava na porta do bar. Ele com certeza engordaria agora que não precisaria andar pra fazer mais nada. Fantasmas podiam engordar? Esperava que não. Seu médico já lhe avisara que ele precisava perder peso por causa de sua pressão ou coração ou rins ou colesterol ou alguma outra coisa do corpo que era meio necessária para viver. Não que Carlos precisasse delas agora, uma vez que morrera. Mas alguns hábitos eram difíceis de largar, e se preocupar constantemente com a morte iminente parecia ser um deles.

Carlos se aproximou e se sentou num banco felpudo que ficava no fim do bar, surpreso que mesmo sem corpo ainda pudesse fazer isso. Um mistério para os cientistas desvendarem. Não que ele confiasse muito em cientistas, claro. Nem descobriram a cura para AIDs e já estávamos no século XXI! O lugar estava vazio, com apenas mais dois clientes tristonhos sentados em mesas afastadas. Ele ignorou os outros da mesma forma que era ignorado. Olhou para trás do balcão, onde a geladeira com as bebidas ficava, e se perguntou como faria para agarrar uma cerveja sem ser notado. Não seria de bom tom para os vivos verem uma bebida flutuante desaparecer. Mesmo que estivesse morto há apenas uma hora, Carlos já entendia os códigos morais dos fantasmas, e ele sempre respeitava todo e qualquer código que existia. Era um homem de bem e trabalhador, e era isso que homens como ele faziam.

De repente, um dos clientes se levantou e começou a berrar com o garçom que passava por ali calmamente. Todos os olhos se viravam para observar o espetáculo da estupidez humana, e Carlos aproveitou a deixa para se esgueirar até a geladeira e pegar uma cerveja. Saiu rapidamente pela porta da frente sem ninguém perceber nada. O garçom agora gritava de volta com o cliente, e isso era muito mais interessante de se observar do que um cerveja voadora, até mesmo Carlos admitia.

Caminhou pela borda da praia, observando dois pequenos barquinhos de pesca desaparecem no horizonte, o deixando definitivamente sozinho (a cantina já estava muito atrás de si a essa altura). Ele tinha um amigo que sempre o convidava para pescar, mas Carlos recusava toda vez. Não via muita graça em ficar horas sentado a espera de um peixe para assassinar e depois comer. Ele pagava por assassinos especializados quando comprava o peixe da feira, muito obrigado. Finalmente, sentou na beira da praia descuidadamente, a cerveja ainda gelada em sua mão. Brigou com a tampa por alguns momentos, mas conseguiu abri-la eventualmente. Hora da verdade, pensou. Tomou um longo gole, fazendo barulho, algo que sua mulher detestava. Parou e colocou a cerveja de lado com expressão triste. Conseguira beber o líquido sem problemas, mas sentir o gosto, ah, já era algo diferente. A cerveja parecia nada em sua boca. Não como água, que simplesmente tem gosto de nada, mas como se ele tivesse tomado um grande gole de ar. Nada. Sem gosto. Sem textura. Bem, estar morto tinha que ter um lado ruim em algum momento. Uma pena. Carlos até estava gostando de ter morrido. Mas sem sua cerveja, qual era a graça da morte?

Graça da MorteOnde as histórias ganham vida. Descobre agora