Naquele Outono

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Naquela tarde fria de outono eu vi você partir. Mais frio do que o vento, que me congelava as extremidades das orelhas, ficou o meu coração, nunca pronto para despedidas.

É que apesar de ter eu mesma constatado que em suas mãos estava o bilhete de volta, não gosto de te ver partir. Fato é que você prometeu que na próxima tarde de outono voltaria, e com a sua volta tudo ao redor de mim voltaria ao normal: você abriria o portão e entraria em festa me procurando, talvez com um ramo de flores na mão e aqueles biscoitinhos que se quebram, invariavelmente, na sua pasta, aqueles biscoitinhos que oferecem no trem. Você nunca os come, e talvez tudo se desse assim. Para mim, o que sempre me bastou, foi que você retornasse de suas viagens de negócios trazendo de volta o seu coração. Sempre gosto quando você retorna com o coração na mão, nesta mesma mão em que você costuma portar os seus cigarros aflitos e dos quais eu reclamo do cheiro, apesar de amar o toque dela, da sua mão.

Foi assim que você prometeu...

E foi agarrada a sua promessa que eu vi passar tantas tardes frias de outono em que o que restou do prometido foi apenas o meu esforço de lembrança daquela tarde fria. Está cada vez mais difícil d'eu me lembrar dos detalhes da nossa despedida, que era para ser apenas o hiato entre duas tardes de outono e que virou a despedida de todas as outras tardes, de todas as outras estações.

Nem sei mais dizer quantas vezes a minha esperança de te rever fez troça do meu olhar perdido, vazio de sentido, andarilho do infinito, procurando por você. Nem sei dizer quantas vezes eu voltei àquela estação. No mesmo horário, em outros outonos, esperando por você.

Confesso que ainda hoje, passado um ano, eu ainda espero que o outono tenha a hombridade de cumprir a sua promessa, porque o outono, sem nenhum pudor, te arrancou de mim como arranca as folhas das árvores, que resistem corajosas ao seu intrometimento gelado.

O outono, ele me secou a vida, e hoje eu vivo apenas da esperança vazia e tola de, em algum outro outono, te reencontrar.

Em nossa casa mantive tudo como você deixou ao partir: o seu pijama azul atrás do travesseiro, o seu cinzeiro preferido, que por mim ainda manteria as cinzas se o vento não as tivesse levado, os seus livros, aquele seu chinelo preferido e até a calça jeans que você usava por toda a semana e que eu reclamava, todas as vezes, que você parecia não ter outra a lhe servir, está ali, na cadeira, como você a colocava sempre para adiantar a partida para o trabalho pelas manhãs. Manter as coisas assim me ajuda a não ver o tempo passar. A não experimentar uma espécie de luto pelo seu desaparecimento inexplicado. Eu me recusei a ser sua viúva, e isto é muito sensato de minha parte, já que não te vi morrer. Eu só te vi partir naquele maldito outono.

Hoje faz um ano, vinte dias e quatorze horas que nos separamos e eu estou aqui sentada em nosso quarto rememorando cada detalhe daquela tarde outonal, daquela despedida injusta. Faço isto todos os dias tentando me deter a algum detalhe que tenha me passado desapercebido, e o faço também para não me esquecer dos pormenores daquele nosso último momento, para não me esquecer do seu olhar, do seu amor, do seu rosto forte. Aproveito este momento de exercício mental para deixar um pouco de luz do sol entrar neste nosso quarto que eu deixei de usar para ajudar a mantê-lo imaculado. Por não mais saber fazê-lo diferente, hoje segui o mesmo ritual, mas junto com o sol veio uma mosca chata que insistia em pousar na sua calça jeans. Tentei me desvencilhar da incômoda por diversas vezes, com abanos de mão. Mas creio que toda mosca tenha deficiência cognitiva, porque elas sempre repetem os mesmos erros, isto, se a inconveniente tiver alguma cognição. Já farta desta batalha perdida contra a mosca doida varrida eu, num ímpeto de ganhar a guerra, puxei a sua calça da cadeira no intuito de protegê-la. Só o fiz porque de fato foi necessário quebrar o meu hábito adquirido de manter os seus objetos imaculados, era preciso protegê-los da mosca subversiva.

Pois que quando puxei a calça com força, dela caiu uma bala e um pequeno papel dobrado. Meu coração acelerou. Estaria ali a última novidade sobre você desde aquele outono, ou quem sabe até uma pista? Com as mãos geladas e trêmulas, com a emoção me arrebatando as forças, abri o bilhete, que pareceu-me um rascunho escrito às pressas. E foi então que apressadamente li:

"Soraia, amanhã me livro de vez da bruxa. Não deixarei sequer uma frase explicando a minha partida. É capaz que ela use como pista para me farejar feito cão fiel. Chego para almoçar. Tô levando bala paras as crianças.

Beijos do seu guloso."

Maldita mosca!

Garotas IncontáveisWhere stories live. Discover now