O REFÚGIO

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  O tartã molhado e gelado cola em suas pernas, cansadas, a perseguição tinha de acabar, a claymore pesa cada vez mais em suas mãos. a pintura de guerra, rachada, cai em migalhas, azul, azul profundo, os olhos dela são desse azul.
Os latidos dos mastins são ouvidos indistintamente ao longe, mas cada vez menos longe. Ele se pergunta se consegue chegar a algum lugar seguro antes que seja encontrado.
Ele já viu a misericórdia dos saxões. Seu grupo padeceu com um tormento que eles chamam de águia sangrenta. Seus pulmões foram retirados da caixa torácica e pendurados, ainda atados pela traquéia, às suas costas, à semelhança de asas. Uma maneira feia de morrer. Uma maneira indigna de morrer.
A claymore cai. Isso é ruim, os músculos estão perdendo o vigor. Foram dias de corrida, sem descanso, comida ou sono... e ainda faltam dias até à segurança, até algum lugar onde possa esboçar alguma resistência. Seus primos distantes do sul o abrigarão, as alianças forjadas pelo sangue existem desde antes do deus cristão chegar. Antes dos eunucos do deus torturado expulsarem os seguidores da velha religião para a clandestinidade. Antes de eles nos haverem forçado a nos curvar diante da deusa-mãe deles. Mas é diante de nossa deusa que nos curvamos.
Alguns momentos para recuperar o fôlego. Ele bebe da água escura, como animal, ele afunda os cabelos manchados de tinta e sangue; a água gelada e barrenta consegue extrair algum vigor da profunda exaustão que sente. Mais próximos os latidos se apresentam. Ele tem de continuar. Suas botas, um emaranhado de peles e tendões de urso, parecem pesar como se atadas a pedras grandes. Muita água, água gelada.
Ao longe, uma pequena formação rochosa, nem chega a ser um outeiro, se apresenta. Uma posição pouco elevada, mas ainda assim melhor que enfrentar seus perseguidores em um terreno plano e amplo. Melhor esconder-se e tentar abater à distância os cães com as poucas setas que lhe restam, alvejá-los mortalmente e relocar-se o mais furtivamente possível; em um momento toda a estratégia desesperada se lhe afigura por inteiro. Ele desconhece o número de seus perseguidores, mas deve haver três ou quatro mastins. Ele se pergunta se conseguirá fazer tombar os cães antes que seus mestres se aproximem demais de sua posição defensiva.
Ele se pergunta se lhe resta alguma energia para combater um número ignorado de saxões bem armados, alimentados e razoavelmente descansados, uma vez que estiveram nos últimos dias no lombo de seus incansáveis cavalos de guerra. Ele passa seus dedos em sua boca, a pouca saliva umedece as pontas dos dedos sujos que logo em seguida corrigem o alinhamento das penas de suas setas. Os disparos tem de ser perfeitos, uma vez que menos de uma dúzia delas lhe restam. Com alguma sorte, talvez consiga abater alguns dos saxões, permitindo alguma esperança de viver para lutar mais um dia.
As pálpebras pesam, o cansaço ameaça salopar seus esforços, mas não, ele não vai tombar antes da hora... A hora, somente a deusa e seu consorte conhecem. Antes que ele vá para onde quer que os homens mortos vão, ele terá alguns mastins e saxões para anunciar sua chegada... Não antes.
Ele confere o arco e se despe de todo excesso de vestimenta e equipamento. Vai precisar de toda vantagem possível, mesmo que seja insensato retirar sua malha de metal e deixar no chão a claymore... é sua única e última chance.
O latido dos mastins se aproxima, ele consegue já ouvir as pesadas pisadas dos cavalos que foram roubados pelos saxões. Quando eles chegarem, vão estar sendo esperados. Vamos ver a quem os deuses favorecem...
Hoje pode ser um bom dia para morrer.  

O RefúgioWhere stories live. Discover now