Natal Para Cegos

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Algumas coisas básicas que todos sabemos: todo mundo tem nariz, boca e olhos, da mesma forma que toda ave tem asas, penas e nenhum dente. Mas nem todas as aves têm a mesma capacidade de uso dessas coisas básicas da vida, por exemplo, dizem que as garças têm penas brancas e são esbeltas, quando alçam voo é como se víssemos um filme em câmera lenta, já os pinguins têm asas também, mas não conseguem voar, então usam-as como nadadeiras para conseguirem alimento nos mares do continente Antártico.

Na minha família eu sou o pinguim no meio das garças.

O bom de nascermos com algo é que acostumamos com aquilo desde sempre, é natural para nós, então por mais difícil que seja, sabemos como lidar. Eu nasci cega, totalmente cega, desde sempre minha vida foi um vácuo sem cores ou imagens reais. Tudo o que eu "vejo" é criado pela minha mente de acordo com o que escuto ou sinto, aquilo que não consigo imaginar eu simplesmente esqueço.

Ao contrário do que as pessoas pensam, a imaginação de um cego é bem limitada. Como você pode imaginar coisas se nunca as viu? Você não tem bem uma referência de como seria aquilo.

Estamos em época de Natal, então meus pais estão montando a árvore com minha irmã e o namorado dela. Eu não tenho como ajudar, quando era criança até tentei, mas um dos galhos espetou meu olho esquerdo e tivemos que ir para o hospital, hoje tudo o que faço é ficar sentada na bancada da cozinha ouvindo eles rirem e contarem coisas uns para os outros. Ás vezes eu pergunto algo sobre como está a árvore ou sobre o que estão rindo, não para chamar a atenção, mas para tentar interagir também, gosto de imaginar como seria uma árvore de verdade, com todas as folhas e galhos no topo e com um tronco imenso.

Nesses momentos eu me sinto na minha própria versão da Antártica, onde não há pinguins nem ursos polares, apenas eu num vácuo imenso e psicologicamente frio e solitário.

É véspera de Natal, então tenho certeza que está nevando. Levanto da bancada e aviso meus pais que vou sentir a neve. Eles sabem o quanto eu gosto da neve, então não me impedem, mesmo sendo noite – algo totalmente irrelevante para mim, já que não posso diferenciar muito bem um do outro.

A parte ruim de ser cega... Bom, é ser cega. A parte boa é que eu sinto tudo com mais intensidade. Eu posso não ver o mar, mas sinto ele mais do que todos quando escuto seu som ou quando toco a água, consigo imaginar um líquido totalmente transparente, mas que parece ser azul. Eu amo o som do mar, por isso pedi para minha irmã pintar meu cabelo com a cor do oceano. Eu só não soube responder quando ela perguntou qual deles, decidi que ela escolheria melhor que eu.

Sinto a neve assim que saio para o quintal. Não está mais caindo dos céus, como pensei que estaria, mas pelo jeito o chão já está coberto por alguns centímetros e meus pés se enterram naquela cobertura gelada. Ando devagar pelo corrimão que liga com o banco do quintal. No começo era difícil fazer isso, mas com o tempo peguei o jeito.

Encontro o banco e sento para sentir o frio que emana da neve. Eu acho simplesmente incrível que gelo possa cair do céu em incontáveis floquinhos capazes de interditar estradas inteiras, é como se a natureza dissesse "Ei, eu posso derrotar vocês com um simples floquinho de gelo multiplicado infinitamente, então não me aborreçam".

— Oi! — Ouço uma voz ao meu lado e dou um pulo, quase caindo do banco.

— Quem está aí? — Pergunto me levantando e me afastando da voz.

— Calma aí, senhorita desconfiança, sou só o seu vizinho, Noah.

— Filho dos Backster?

— Ou isso aí que você preferiu me chamar.

Natal Para CegosWhere stories live. Discover now