Monstro Natalino

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Vovô certa vez perguntou se eu acreditava em assombrações. Eu tinha oito anos na época e tudo que pensei foi no monstro que habitava o armário do meu quarto e que vez ou outra escondia-se embaixo da minha cama. Mas eu não sabia ao certo se era sobre isso que ele estava se referindo, então eu não soube o que responder e apenas dei de ombros sem muito interesse.

Ele me contou sobre como minha falecida avó era benzedeira e na maioria das vezes tratava de crianças enfermas. Haviam boatos na cidade sobre vovó ser bruxa, mas, pelo pouco que me lembrava dela, eu só achava que Vovó Daphne era uma hippie de cabelos longos e brancos, que sempre tinha um chá para qualquer indisposição, e era como eu desejava ser quando fosse mais velha. Vovô contou também que ela aprisionava em frascos de vidro monstros que assombravam crianças e os deixavam guardados em uma estante no cômodo onde agora era o meu quarto. Mamãe, da cozinha, gritou para que meu avô parasse de me assustar com aquelas histórias de terror e disse que eu não deveria acreditar no vovô, porque ele contava a mesma história quando ela era criança. Vovô gargalhou e disse que suas histórias eram tão verídicas quanto seu desvio de coluna que o deixou corcunda.

Naquela noite, o abajur ao lado da minha cama ficou aceso. Eu não poderia correr o risco de vovô estar falando a verdade e eu dormir no escuro do quarto que antes serviu como depósito para pequenas prisões particulares de vidro para monstros. Algum frasco com monstro poderia ter caído e quebrado libertando o monstro que agora morava no meu armário. Mamãe me deu boa noite, logo depois vovô passou pelo quarto e disse que eu deveria rezar antes de dormir pedindo proteção ao meu anjo da guarda. Confesso que fiquei confusa, porque vovô nunca foi do tipo religioso.

E foi naquele começo de madrugada que, de fato, eu o vi pela primeira vez.

A madeira do armário estalou e a dobradiça velha rangeu revelando a mão coberta pela luva branca encardida saindo da escuridão e empurrando a porta. Eu sentei na cama esperando que o monstro se revelasse por completo, antecipando que ele se arrastaria até embaixo da minha cama como de costume e ficaria lá até que eu adormecesse. Mas, dessa vez, eu daria uma boa olhada nele.

Eu acho que monstros assumem a forma daquilo que mais tememos, porque eu podia jurar que o monstro do meu armário era a droga do Papai Noel.

Sim, o Papai Noel. O senhor pançudo, com a barba branca e a roupa vermelha, com aquele gorro ridículo que hoje em dia as pessoas usam no Natal para tirar foto e postar nas redes sociais. Ele nunca me enganou. Era só ver a roupa vermelha... Como o sangue das suas vítimas. Não é exagero meu, e você pode achar que é, mas veja bem: Quem, em sã consciência, acha tudo bem um homem invadindo a sua casa pela chaminé para deixar presentes embaixo de uma árvore sem pedir nada em troca? Ele invade as casas. E aqueles que ficam sentados horas no shopping tirando fotos com crianças ranhentas e choronas? Esses são os piores na minha opinião. Eu tenho certeza que eles sugam a vitalidade de cada criancinha que passa por eles para durar até o próximo Natal. Repare como eles se multiplicam a cada ano. O mundo será dominado por Papais Noéis e, quando vocês perceberem isso, será tarde demais.

Mas voltando para o Papai Noel do meu armário: ele era medonho. Como se não bastasse o visual original que o "bom velhinho" já tem, esse mostrava seus dentes grandes e pontudos quase como os dos Pennywise na última adaptação cinematográfica de It. E talvez aqui seja conveniente contar que, além do Papai Noel, palhaços eram igualmente terríveis para mim.  

Eu podia jurar que o Papai Noel do meu armário seria capaz de arrancar a minha cabeça com uma abocanhada só. Eu deveria ter gritado. Era a coisa mais sábia a se fazer. Mas, ao invés disso, eu fiquei paralisada encarando-o com aqueles dentes afiados e os enormes olhos vermelhos que pareciam poder sugar a minha alma. Na mesma hora eu me arrependi de ter deixado o abajur aceso, porque assim eu poderia ver claramente cada detalhe bizarro do Papai Noel.

Eu acho que monstros do armário se alimentam de medo, ao contrário do monstros do Monstros S.A. que produzem energia com os gritos das crianças que assustam, porque, quanto mais medo eu sentia, mais prazeroso parecia ser para o Papai Noel e mais próximo ele ficava de mim. Dessa vez, não foi para debaixo da minha cama a direção que tomou.

Lembro de que em determinado momento eu me joguei no travesseiro e agarrei o cobertor finalmente tentando gritar. Mas o grito ficou preso na minha garganta quase me sufocando. Eu acho que fiquei alguns bons segundos sem respirar com tamanha força que eu fazia para produzir qualquer som que chamasse atenção da minha mãe ou avô. Quando consegui finalmente entender que não conseguiria gritar e desisti,  fechei os meus olhos o mais forte que eu podia e recorri a única coisa que eu poderia fazer: rezar.

E eu rezei. Não sabia ao certo se era para o meu anjo da guarda, como meu avô havia sugerido mais cedo ou se para o Deus que mamãe algumas vezes mencionava. Naquela época não entendia muita coisa sobre isso, já que minha família nunca fez muita questão de me ensinar qualquer coisa a respeito. "Católicos não praticantes", era o que eles diziam ser e eu tenho para mim que essa só era uma desculpa para aliviar suas consciências de quem não frequentava a igreja aos domingos como as outras famílias do bairro onde morávamos.

Eu rezei da forma como supus que se rezava. Comecei explicando que não era muito boa nisso, afinal, precisava explicar ao meu anjinho da guarda (ou a Deus) que eu não tinha muita experiência com aquilo, mas que precisava urgentemente de alguma ajuda divina. Depois eu expliquei o que estava acontecendo, para o caso do meu anjo da guarda (ou Deus) estar muito ocupado com outras questões, porque eu não sabia se tinha um anjo da guarda só para mim ou se precisava dividi-lo com outras crianças, e, quanto a Deus, eu não tinha certeza se ele estaria dando mais atenção a minha situação com o Papai Noel do meu armário ao invés de qualquer outra parte do mundo que estivesse em guerra. Pedi desculpa pela falta de jeito, e eu não sei ao certo o motivo de fazer isso, mas gosto de acreditar que foi por ser muito educada e não porque estava dando atenção a coisas bobas ao invés de chegar logo no assunto e me livrar do monstro.

Eu senti o Papai Noel arquear-se sobre mim e sua respiração pesada e barulhenta a pouco centímetros do meu rosto como se ele soubesse o que eu estava fazendo e estivesse me desafiando a continuar.

Preciso confessar e dizer que nunca aprendi nenhuma oração e até acho que arrisquei algumas frases, mas tenho quase certeza que estavam todas fora de ordem. Mas também acho que o meu anjo da guarda (ou Deus) não ligou muito para a minha falta de jeito, pois no instante seguinte eu despertei em um sobressalto inspirando muito forte, como se algo estivesse sobre o meu peito impedindo que eu respirasse.

O abajur ainda estava acesso e a porta do armário estava entreaberta, e eu posso jurar que a última coisa que vi antes de me levantar e correr para o quarto da minha mãe, foi a ponta fofa do gorro do Papai Noel do meu armário voltando para o seu lar.

Grandes Monstros em Pequenos FrascosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora