Pão

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Culturalmente somos programados a perder muito tempo e energia para tentar evitar, corrigir ou se livrar das sensações negativas e experiências desagradáveis que sentimos quando sofremos de algum tipo de mal estar emocional, seja uma ansiedade, medo, angústia, saudade, culpa, você pode nomear outras mais, ficamos preocupados tentando de tudo para nos sentirmos melhores sem sucesso.

Damos demasiada atenção ao sentimento ruim daquela experiência, que somos incapazes de resistir o som da sirene dos pensamentos, reagimos impulsivamente, especialmente quando são sensações desconfortáveis, frequentemente somos seduzidos a analizar, descobrir, consertar ou mudar o que pensamos. Rotulamos o que aparece na mente como sendo algo obrigatoriamente sobre nós, levamos para o lado pessoal sem o benefício da dúvida, ao tornar próprio, viramos reféns de uma ilusão sensorial, passamos a acreditar na aparência que a realidade se transformou, porque a ótica está na lente que usamos sem questionar. Ao se ver sem saída daquela experiência, julgamos que algo precisa mudar e nada do que fazemos traz benefícios adequados, já que a visão não está clara do que ocorre conosco, para enxergar a saída, precisamos primeiro perceber que estamos numa armadilha.

A orientação antiga e mais comum que recebemos, diz que o melhor a se fazer é direcionar conscientemente nossa atenção ao conteúdo daquilo que permeia nossas cabeças e então poderíamos ativamente criar melhores pensamentos no futuro, ou reenquadrá-los pelo lado positivo.

Isto não somente é exaustivo, difícil e ineficiente, como perpetua o mal-entendido da natureza do pensamento. Convence as pessoas de que é possível impedir que essa negatividade surja em nossas mentes, numa tentativa contra o curso natural, seria como tentar impedir o mar de produzir ondas para evitar um caixote. Ao não encontrar a paz na tentativa inútil de interromper a passagem dos pensamentos negativos, seu bem estar entra em declínio e fica a deriva.

Ao invés de nos orientar quão fluido, impessoal e aleatório o conteúdo de cada pensamento naturalmente será, embora seu alvo seja neutro, nos pede para examinar o que está acontecendo em nossas mentes, acabando com a neutralidade daquilo que nos incomoda, e passamos a acreditar que o alvo é de fato o problema e não que acabamos de redirecionar a responsabilidade de uma função natural do ser humano para o alvo. Assim ficamos à mercê das provocações sentimentais de cada onda de pensamento, incapazes de compreender nesse estado e com essa ótica o que ocorre e como devemos nos comportar diante dessa ilusão, e o mar não para de te engolir, não é assim que se lida com as ondas do mar quando entramos nele.

Assim como ouvimos o barulho de um trem se aproximando, o mesmo acontece com os vagões dos pensamentos. Só porque chama a atenção, não significa que você é obrigado a embarcar nele, basta ficar na plataforma da paz enquanto espera ele passar e chegar o que vai para o destino desejado.
Seu barulho e turbulência chega assustar as vezes, e por isso cedemos a pressão equivocadamente e embarcamos involuntariamente, se isso acontecer deixe seguir seu curso natural até a próxima estação, e respeite o ambiente de cada vagão e o tempo de viagem entre cada estação, porque a experiência que ele traz, é a perfeita representação daquele conteúdo e momento. Não se desespere tentando fazer algo para trocar de vagão, mudar seu conteúdo, evitar a experiência. Isso só intensifica a sensação, seja paciente e aguarde. A primeira vez nos parece loucura não fazer nada a respeito, mas tão logo você aprende que seu envolvimento não ajuda, mais fácil ficará nas próximas vezes a espera entre uma estação e outra.

Acreditar que as preocupações são problemas reais e pessoais, nos seduz a partimos pra ação de colocar nosso tempo e esforço para "resolver", e ai começa o desafio insano para sentir-se melhor, tudo isso enquanto ignoramos o fato de que nada em si (falo do objeto que chamou a sua atenção), tem algum valor. Só porque pensamos algo de baixa ou alta qualidade a respeito, ou até que façamos algum juízo sobre ele, continuará em sua neutralidade existencial. Então pra que colocar a culpa do seu mal estar em algo fora de si?

Ficar ruminando as informações trazidas a mente, mesmo que inconsciente e involuntariamente, não chega nem perto de ajudar, quanto ao acordar para o fato de que somos criaturas pensantes, aquele que tanto recebe pensamentos, embora consciente ou inconsciente deles, quanto aquele que ativamente escolhe pensar sobre algo. Deixamos a posição de reféns das experiências de baixa qualidade, que são produzidas pela atenção que damos ao que está em nossa mente no momento, e passamos a uma postura de observador da fluidez da passagem temporária de cada pensamento. Respeitando o tempo necessário de estadia de cada pensamento, deixamos a passagem livre, sem sofrer a ilusão de seu conteúdo por mais sedutora que sua chamada for, é bom estar consciente de que enquanto seu tempo não passa, o departamento de efeitos especiais em nossa mente naturalmente produzirá sentimentos e experiências que o represente, sendo assim veja que é o funcionamento do seu ser em operação e não um problema real com o qual você obrigatoriamente tenha que lidar, o desconforto é comum enquanto acontece, mas garanto que ao ver sem essas lentes que embasem sua visão, a sensação ruim perde sua força de atração e incômodo. Porque cada sentimento é perfeito em si, já que é a exata expressão do que se ocorre ao pensar, esteja ciente dele ou não. Logo aquilo que o incomoda, é você mesmo que produz, não porque você assim o quer, mas porque é sua natureza, você sempre sentiu aquilo que está pensando no momento.

Podemos pensar sobre pensamentos como uma massa crua, um material não processado da nossa experiência, do qual todo assado da criação surge. A consciência seria como um forno que trás essa massa a vida como um pão e então podemos ter uma experiência deste pão, ele poderá ser visto, terá tato, gosto, cheiro, e som. Seria como uma esteira transportadora infinita de massa crua indo numa direção, tomando forma, sendo assado no forno, e saindo como um pão do outro lado.

Assim como qualquer padeiro irá lhe dizer, nem todos os lotes saem perfeitos toda vez. Nem tudo que sai do forno está fresco, da água na boca, e está perfeitamente delicioso. As vezes sai deformado, fica no forno por muito tempo ou não assa apropriadamente. Ainda que no final a citação saia errado, o processo continua operando de acordo com os mesmos princípios básicos: a massa crua por um lado, o forno traz a vida, e então se faz o pão. A boa notícia é: sempre tem novas fornadas de pães, logo em seguida dos pães de baixa qualidade.

Não agrega em nada, prestar atenção em cada pão individualmente. Se o pão queimar, ou foi feito com massa velha, ou tinha algum ingrediente complementar desfavorável, o jeito mais ineficiente de uso da nossa energia seria tentar mudar o pão adicionando sal, açúcar, manteiga, ou raspando as partes queimadas. É tão mais fácil jogar fora, deixar dissolver, e observar as novas criações sairem do forno. Simplesmente não faz sentido se envolver com nossos pensamentos velhos e obsoletos, uma vez que percebemos que nosso pensamento fresco e delicioso está a caminho.

Isso não quer dizer que depois disso tudo o pão sairá perfeito, haverá tanta variação nos pães quanto há na natureza, um mistério imprevisível e até legal quando vemos quão seguro isso realmente é.
Uma vez que percebemos que pães estragados são apenas pães estragados, nós não temos que fazer nada com eles. Não temos que muda-lós, Não temos que comê-los. Podemos simplesmente esperar por pães: frescos, deliciosos, pães assados bonitos que são criados no momento seguinte.

Na minha própria vida eu vi esta percepção ajudar com problemas difíceis. Quando algo parece realmente problemático, eu tenho a sensação de que tem algo que eu simplesmente não estou vendo, a solução está fora de alcance. Quando estou preocupado em passar manteiga nos pães queimados de todos os meus problemas, eu apenas esqueci quão bom é o sabor de pães frescos. Mas quando inevitavelmente eles aparecem, é incomparavelmente melhor, mais nutritivo e satisfatório que o esperado. Nenhuma quantidade de pães deformado consegue ser tão bom quanto pães frescos, eles tem simplesmente uma forma e qualidade diferente.

Há conforto em saber que não importa quão horrível uma experiência é, é uma forma temporária e sua dissolução não requer absolutamente nada de nós. Somos livres para viver nossas vidas saboreando os pães deliciosos enquanto deixamos os pães deformados pra lá. Só porque eles são feitos em nossa cozinha não significa que temos que comê-los até ficar cheios.

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⏰ Last updated: Dec 05, 2018 ⏰

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