O francês da mesa ao lado - Lavínia Rocha

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— Passas no arroz? — Fernanda perguntou, mas não consegui computar sua frase, já que meus olhos estavam no francês da mesa ao lado.

Ele se revezava entre a caneca, que continha uma bebida quente a julgar pela fumaça, e um lápis, que deslizava na folha branca. Como eu, estava acompanhado de um amigo, mas não tive a chance de reparar nele, já que toda minha atenção estava naqueles lábios carnudos, que formavam um biquinho a cada palavra francesa que assim exigia. Ainda não tinha fluência na língua para saber ao certo o que falavam, mas não era como se isso me impedisse de continuar prestando atenção.

— Marcela? — Nanda me cutucou. — Passas no arroz ou não? — ela repetiu com certa impaciência.

— Nem pensar. — Fiz cara de asco, e uma expressão entristecida tomou conta da minha prima.

— Vai ser o primeiro Natal sem a famigerada briga das passas. — Ela fingiu enxugar lágrimas inexistentes, e eu ri. — Na verdade, acho que vou colocar, daí nós reclamamos antes de comer e jogamos pro cantinho do prato, só pra não perder a tradição.

— Acho justo. Se vamos passar o primeiro Natal longe da família, pelo menos manter toda a dinâmica das passas é importante — respondi e, no momento em que os olhos de Nanda caíram na sua lista de preparativos para nossa ceia de Natal, voltei meu foco para a mesa ao lado.

Então me veio um estalo e consegui lembrar com quem ele se parecia: Mbappé, jogador da seleção francesa. Sua pele era mais escura, como a minha, mas havia algo nos olhos e no jeito de sorrir que me remetia ao jogador. E a beleza, é claro.

Ele me pegou o encarando quando deixou a caneca na mesa para voltar ao papel, e eu me forcei a não desviar os olhos. Sempre tratei aquilo como um jogo – e nunca gostei de perder.

O francês da mesa ao lado pareceu desafiado e sustentou meu olhar, para então abrir um sorrisinho. Movimentei uma sobrancelha e pressionei meus lábios sem desistir – ele era bonito demais para que eu ousasse parar de apreciar.

Seus olhos me estudaram com atenção, passando pelos meus cabelos crespos, meu rosto e meu casaco vermelho, que eram o máximo que conseguiam alcançar sem que a mesa da lanchonete os impedisse. Tombei a cabeça para o lado e abri um sorriso para acompanhar sua expressão, enquanto me perguntava quem seria o primeiro a desistir daquela troca de olhares.

Mas soube que jamais obteria essa resposta quando o garçom se colocou entre nós dois para oferecer o cardápio e anotar os pedidos.

— Decoração. — Nanda ergueu um dedo da mão direita, enquanto utilizava a outra para escrever o tópico. — Árvore de Natal, algodão e luzes brancas pra simular neve...

— Já parou para pensar que essa decoração bem Polo Norte não tem nada a ver com o Brasil? Aqui faz todo sentido essa coisa de neve e Papai Noel de bota, gorro e casaco pesado — apontei a janela ao nosso lado para mostrar os flocos de neve reais que caíam lá fora —, mas dezembro no Brasil é verão!

— Verdade! — Ela riu em concordância.

— Papai Noel brasileiro tinha que usar bermuda, camiseta florida, carregar um protetor solar fator sessenta e andar com um ar-condicionado ambulante pra dar conta de entregar tanto presente naquele calor. E nada de saco vermelho, os presentes iam vir naquelas sacolinhas de supermercado.

— E certamente seria um homem negro, pra representar a maioria da população brasileira.

— Real. — Balancei a cabeça, e minha atenção se voltou para o francês da mesa ao lado quando percebi que o garçom já tinha saído, eliminando a barreira entre nós dois.

Ele estava focado no papel branco em cima da mesa, mas conseguia manter uma conversa despojada com o amigo. Observei como semicerrava os olhos e movimentava o lápis de forma sutil e precisa. Comecei a imaginar o que estaria desenhando. Seria algo relacionado à conversa com o amigo?

Tentei entender o que falavam, mas não fui bem-sucedida. Nossas mesas estavam próximas o bastante para que o som chegasse bem claro, mas Nanda e eu havíamos começado o intercâmbio na França havia poucos dias. Ainda não tinha dado tempo de melhorar o idioma com as poucas aulas que tivéramos.

— O que você tanto olha? — Ela abandonou sua lista por um tempo para buscar meu interesse. — Ah, entendi! — Nanda se ajeitou na cadeira para observá-lo.

— Fala sério, olha que gracinha. — Girei a cabeça aguardando a opinião da minha prima, e os olhos do francês da mesa ao lado saíram do desenho até caírem em mim. Estávamos de volta ao jogo.

— Realmente — Nanda concordou ao colocar um de seus cachos atrás da orelha.

— Você precisa ver quando ele começa a falar com aquele sotaque francês, biquinho e tudo mais.

— Nossa, faz quanto tempo que tá de olho nele?

— Faz quanto tempo que chegamos aqui? — Me virei para minha prima, que desatou a rir. — Eu só fico pensando em como seria ótimo se ele pudesse trabalhar comigo essa questão da língua francesa.

— Ai, garota, você é ridícula — Nanda falou entre risadas, e eu achei graça. — Podemos voltar a organizar nosso Natal? — Ela tentou ficar séria, sem muito sucesso, e apontou para suas anotações.

O francês da mesa ao lado voltou sua atenção para o desenho que fazia, e eu me concentrei em ajudar Nanda com os preparativos. "Fácil" não é a palavra que utilizaria para descrever como foi tentar focar na lista da minha prima. A carne foi fraca várias vezes, e não ajudava em nada o fato de perceber que ele também não conseguia evitar.

Assim estabelecemos um novo jogo de olhares rápidos, mas que diziam muito.

Quando o francês da mesa ao lado chamou o garçom, fiquei desapontada pela possibilidade de ele pedir a conta e ir embora. Será que morava no bairro também? Nos esbarraríamos em outros momentos?

— Ok, então no final de semana vamos comprar essas coisas e começar a preparar tudo. — Nanda dobrou sua lista e guardou na bolsa.

— Ótimo. — Assenti, voltando os olhos para o que estivera em meu foco durante quase todo o tempo. Ele disse algo que fez seu amigo se virar para mim, e me perguntei o que eu não daria para ter entendido.

— Eu vou ter que ir lá pegar o número dele pra você? — Nada zombou.

Puxei o ar para responder que não seria uma má ideia, mas o garçom veio até minha mesa, falou algumas coisas que não compreendi e me entregou um papel.

Peguei para analisar melhor e encontrei a ilustração de um Papai Noel negro de bermuda laranja e flores coloridas combinando com a camiseta. Na mão direita, um protetor solar fator sessenta e, na esquerda, sacolinhas de supermercado cheias de presentes. Atrás, um objeto que lembrava um ar-condicionado.

— Ai, não! — Nanda gritou levando a mão a boca e disparou a rir.

Meus olhos caíram no francês da mesa ao lado; ele deu uma piscadinha para mim e tirou uma bandeira do Brasil de dentro da mochila. Comecei a repassar tudo o que havia falado em alto e bom tom com Nanda quando pensava estar protegida pela barreira linguística do português.

O francês da mesa... Não. O brasileiro da mesa ao lado fez um sinal para que eu checasse o verso do papel, e foi onde pude ler um número de telefone e as frases:

"Fico lisonjeado pelos elogios. Podemos, sim, combinar um dia para estudarmos línguas."

Eu só quis cavar um buraco e me enterrar.

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