(Parte 20) - Divisor de águas

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          As pálpebras inchadas não me faziam esquecer do meu progresso na noite anterior. Era a primeira vez que eu gostava de ser lembrada de um episódio de vulnerabilidade. Depois da minha confissão, ficamos a noite inteira conversando, falando sobre o tempo em que ficamos separados e como tudo tinha sido uma grande bobeira. Famílias não deveriam ser permitidas de se afastarem, não a minha. Por todos aqueles anos eu havia esquecido o que era ter seu sangue ao seu lado, como eles tinham o poder de dizer as coisas certas nos momentos mais difíceis e como os abraços deles significam o mundo para mim. Ser aceita no ninho em que fui criada era como um casaco quentinho de lã em seu corpo no dia mais frio do ano. Acho que no fundo, bem no fundo, eu sabia o quanto eu precisava daquele acolhimento.

          Nem mesmo o fato de ter sido necessário ocorrer algo tão trágico para nos trazer de volta às vidas um dos outros parecia me abalar. Caminhos tortuosos ainda são caminhos e ainda servem para nos levar em alguma direção. Minha sorte foi ter chegado ao meu lar, o lugar que eu nunca deveria ter menosprezado e muito menos negligenciado. Meus pais sempre significaram o mundo para mim e eu havia aprendido a minha lição. Família acima de tudo. Posso pensar coisas horríveis deles pelo tempo que for, mas não iria cometer novamente o erro de cortá-los da minha vida. Aliás, quem faz isso tendo Cecílie e Oswald como pais?

          Tomei um longo e quente banho, tentando aproveitar aquele momento de calma que a vida enfim tinha me trazido. Não pensava mais que, se fechasse meus olhos para enxaguar o cabelo, Daniel iria aparecer atrás de mim como um fantasma. Não me sentia mais tão desprotegida na casa de janelas panorâmicas e de cerca baixa, pois eu não estava mais sozinha. Meus pais, eu sabia, iriam me proteger de todos os monstros que estivessem debaixo da minha cama ou escondidos no meu armário. Eles iriam, todas as noites, desejar que eu sonhasse com anjos e não mais com meus demônios. Eles iriam proteger Evie e cuidá-la da maneira mais maternal possível até eu terminar todo meu tratamento e até mesmo se eu tivesse uma recaída.

          Eu também não estava mais sozinha no exterior da casa. Eu tinha minhas amigas, minhas fiéis escudeiras que, apesar de todo o afastamento, não remediaram atenção a mim quando eu nem mesmo percebi que precisava. Elas que criaram um grupo somente para me encher de mensagens de amor e carinho, cada uma me mandando um enorme texto que traduzia todas suas ações e tudo o que não conseguiram dizer frente a frente. Elas também estavam dispostas a me ajudar no que fosse preciso, mesmo que eu achasse que estaria me aproveitando da bondade delas. Olhar para aquela tela quebrada do meu celular não era mais ameaçador, nem mesmo uma memória daquele dia fatídico, era simplesmente um objeto. E chegar àquela conclusão levou tempo, mesmo parecendo que nada havia mudado ou que eu não tivesse tido algum progresso, a pequena luz no fim do túnel se transformava em um clarão.

          Enrolei-me na toalha e parei em frente ao espelho em cima da pia. Passei a mão na sua diagonal para desembaçar e, assim, admirar meu reflexo. Eu estava sorrindo. Um sorriso sincero que parecia brilhar bem ali no meio do vapor, no meio de toda a tempestade que ainda existia dentro de mim. Era o sinal que eu precisava. Eu iria lutar com mais afinco, eu iria correr atrás de me desatar das amarras daquelas dores que não me deixavam há mais de um mês. As cicatrizes em meu corpo eram marcas da guerra que, sim, havia acabado e eu precisava entender, de uma vez por todas, que eu estava segura. Precisava entender que havia conseguido deixar as coisas para trás e minha vida antiga não tinha espaço em Floratta Bay, porque ali era o ponto do meu recomeço, do meu renascimento.

— Bom dia! — A frase saiu em um canto exagerado, mas eu não ligava.

          Meus pais decidiram tomar o café da manhã no jardim para aproveitar o lindo dia que fazia e eu absorvia, como uma planta, toda a energia que aquela manhã poderia me oferecer.

Um pedaço de mimOnde as histórias ganham vida. Descobre agora