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Entretanto, com a chegada de Raimundo, reuniram-se em casa de Manuel as velhas amizades da família. Vieram as Sarmentos com os seus enormes penteados; moças feias, mas de grandes cabelos, muito elogiados e conhecidos na província. "Tranças como as das Sarmentos!... Cabelo bonito como o das Sarmentos! Cachos como os das Sarmentos!..." Estas e outras tantas frases se haviam convertido em preceitos invariáveis. Fora das Sarmentos não conheciam termo de comparação para cabelos; e elas, cônscias daquela popularidade, ostentavam sempre o objeto de tais admirações em penteados assustadores, de tamanhos fantásticos.

— Tenho pena, afetava às vezes D. Bibina Sarmento (esta era Bernardina) de ter tanto cabelo!...

Para desembrulhá-lo é um martírio. E, quando depois do banho, não me penteio logo, ou quando passo um dia sem botar óleo... Ah, dona, nem lhe digo nada!...

E arregalava os olhos e sacudia a juba, como se descrevesse uma caçada de leões.

A família Sarmento compunha-se, além desta D. Bibina, de outra rapariga e de uma senhora de cinqüenta anos, muito nervosa, tia das duas moças. A velha só falava em moléstias e sabia remédios para tudo; tinha um grosso livro de receitas, que ela em geral trazia no bolso; em casa uma variadíssima coleção de vidros, garrafas e púcaros; guardava sempre as cascas de laranja, de romã e os caroços de tuturubá, os quais, dizia pateticamente "Abaixo de Deus, eram santo remédio para as dores de ouvido!"

Chamava-se Maria do Carmo, e as sobrinhas tratavam-na por "Mamãe outrinha". Era sumamente apreensiva e entendida de doces.

Viúva. Passara a mocidade no Recolhimento de Nossa Senhora da Anunciação e Remédios, onde concebera o seu primeiro filho do homem com quem depois veio a casar — o tenente Espigão, tenente do exército, um espalhafateiro dos quatro costados, que andava sempre de farda e desembainhava a durindana por dá cá aquela palha. Contavam dele que, um dia, num jantar de festa, perdendo a paciência com o peru assado, que parecia disposto a resistir ao trinchante, arranca do chanfalho e esquarteja a golpes de espada o inocente animal.

Gostava de fazer medo as crianças, fingindo que as prendia ou afiando a lâmina reluzente no tijolo do chão; e ficava muito lisonjeado quando lhe diziam que se parecia com o Pedro II. Tinha-se na conta de muito atilado e a todos contava que fora poeta em rapaz: referia-se a meia dúzia de acrósticos e recitativos, que lhe inspirava D. Maria do Carmo, no seu tempo de recolhida.

Coitado! Morreu de uma tremenda indigestão no dia seguinte a uma ceia, ainda mais tremenda, na qual praticara a imprudência de comer uma salada inteira de pepinos, seu pratinho predileto. A viúva ficou inconsolável, e, em homenagem à memória do Espigão, nunca mais comeu daquele legume; seu ódio estendeu-se implacável por toda a família do maldito; não quis ouvir mais falar de maxixes, nem de abóboras, nem de jerimuns.

— Ai o meu rico tenente! lamentava-se ela quando alguém lhe lembrava o esposo. Que maneiras de homem! que coração de pomba! aquilo é que era um marido como hoje em dia não se vê!...

A outra sobrinha de D. Maria do Carmo, chamava-se Etelvina. Criaturinha sumamente magra,

e tão nervosa como a tia; nariz muito fino grande e gelado, mãos ossudas e frias, olhos sensuais e dentes podres. Era detestável: os rapazes do comércio chamavam-lhe "Lagartixa".

Fazia-se muito romântica; prezava a sua cor horrivelmente pálida; suspirava de cinco em cinco minutos e sabia estropiar modinhas sentimentais ao violão. Diziam, em ar muito sério, que ela tivera aos dezesseis anos uma formidável paixão por um italiano, professor de canto, o qual fugira aos credores para o Pará e que, desde então, Etelvina nunca mais tomara corpo.

Apresentou-se também em casa de Manuel a sra. D. Amância Sousellas, velha de grande memória para citar fatos, datas e nomes; lembrava-se sempre do aniversário natalício dos seus inúmeros conhecidos, e nesse dia filava-lhes impreterivelmente o jantar. Estava sempre a falar mal da vida alheia, à sombra da qual aliás, vivia; quinze dias em casa de uma amiga, outros quinze em casa de um parente, o mês seguinte em casa de um parente e amigo, e assim por diante; sempre, sempre de passeio. Ia a qualquer parte, fosse ou não fosse desejada, e, às duas por três, era da casa. Conhecia todo o Maranhão; contava, sem reservas, os escândalos que lhe caíam no bico, e andava sozinha na rua, passarinhando por toda a cidade, de xale, metendo o nariz em tudo. Se morria algum conhecido seu, lá estava ela, a vestir o cadáver, a cortar-lhe as unhas, a dizer os lugares-comuns da consolação, tida e citada por muito serviçal, ativa e prestimosa.

O Mulato (1881)Where stories live. Discover now