CONTO

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Cara Lia,

Você já sabe, mas os corpos que nos tocam não transmitem calor, os beijos que nos dão não transmitem confiança. Nesse mundo automatizado, cada vulto parece nos relembrar que somos nascidos daqueles que se reclusaram nas margens: que somos bastardos inglórios de filhos da outra. Então, nos tocamos. É ao nos tocar que sabemos: estamos bem, temos uma a outra. O calor dos seus dedos e a sua pele não-artificial me permite sentir o traço de humanidade que foi dado a nós, tão raro e peculiar nesse mundo de casebres dominados por seres robóticos. Os prédios destruídos por guerra fazem com que o cenário utópico entregue pelos inspetores seja contrastante com o que enxergamos ao saímos do orfanato. Dizem que, ao passar pela transição, entendemos o mundo como ele está, até lá, somos apenas jovens bárbaros.

Quando o dia amanhecer, porque ele irá amanhecer, você entenderá e tudo será trocado em nossas vidas. Ou melhor, na sua. Quando o sol chegar, não será mais uma falha dos outros, e sim um deles. Se possível, me visite: deixe-me ver sua pele plastificada e seu corpo duro como aço, deixe-me dar leves toques em suas canelas e te ver impedida de sentir dores leves, como nós, humanos. A nossa raça estava destinada a extinção, é o que todos falam, até os marginais nos entregam a eles, para que possamos assim viver a utopia. Não reclamo, o Brasil não é ruim, temos comida para os dias famintos e ar-condicionado para o dia quentes, você sentirá falta disso? De sentir a temperatura? A fome antes do almoço? Espero que um dia encontrem um jeito de passar a sua consciência o sentimento de frio e calor, fome e estafa, para que possamos nos esticar em frente ao aparelho ou deitar no chão gelado como em nossa infância. Para que a diferença de três anos não nos separe completamente.

Até lá, permita-me ser nostálgica e escrever essa carta com as tintas que nossas professoras deram na infância, aquela que só aparece a luz negra e possuí o cheiro doce de tutti-frutti. Não para impedir de lerem, mas para que nossa comunicação possa se tornar tão sincera quanto um dia foi.

Quando você chegar, por favor, seja o que for, lembre-se: ainda sou nova. Eles te levaram hoje, prometeram te trazer amanhã, no seu aniversário de dezoito anos, mas ainda resta bastante tempo para a minha vez. Os meus quinze anos não me permitem te acompanhar na transição, mas ao olhar nos meus olhos, diga que toda essa minha inquietude é fruto da ansiedade, a mesma ansiedade que dominou a sociedade e nos forçou a transitar, e que um dia passará.

Quando você chegar, lembre-se de mim não como uma bastarda, mas como sua irmã.

Com amor,

Carol.

*

Corro!

Enquanto corro, vejo os restos do que já foi uma cidade. Existe um mangue e um shopping enterrado nele, depois da implosão marcada pelos livros de História como: "a queda do consumismo na zona nobre da área 9", não é tão explicativo quanto deveria ser. Continuo correndo, aproveitando dos prédios antigos e quebrados para cortar caminho. Corríamos juntas das madames ricas no passado, pulávamos os muros e nos riscávamos nas tintas das velhas fábricas, esperando o dia que nos riscassem com vidro e nada ocorresse.

A cidade é acabada, sabemos disso. Robôs não precisam de cuidados e os marginais não são considerados pessoas suficientes, por isso, os lixos consomem os bueiros e inundam as ruas no inverno. Você sempre ansiou para o dia que deixaríamos de ter o sangue deles – de nossos pais –, eu sempre ansiei igual, mas depois daquela frase... tudo está mudando, assim como o sol que se põe e transforma o céu do Nordeste em um tom esverdeado. Nos falaram que um dia foi azul, não o imagino de outra coisa: o verde-perolado colore o pouco dos que nos resta.

Após o Brasil realizar a transição, tomamos o poder e as coisas melhoraram. Havia dinheiro, educação, havia força ao povo e nada tiraria isso. Eu não sei quem você é, sinto muito. Lia me disse. Você me disse – pois se narro algo, é apenas para que tenhamos registros no futuro, para que nós tenhamos um futuro.

Nascidas entre Ossos e Metais [CONTO]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora