(Parte 10)

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          Acordei em um súbito, sem saber exatamente onde eu estava. Quando voltei para o quarto na noite anterior, acabei sentando no sofá de frente para a janela e fiquei contemplando o céu noturno enquanto minha cabeça dava voltas. E fora exatamente ali que eu acordara, com uma forte dor no pescoço, assim como no resto do corpo.

         Levantei-me, tentando ao mínimo não esticar tanto meu corpo. Sabia que era necessário um alongamento para aliviar, mas a dor do processo não parecia tão convidativa no momento. Fui em direção ao quarto e, ao ver que Evie ainda dormia serenamente, tentei fazer pouco barulho para que ela aproveitasse seu sono. Escorei-me na cômoda enquanto abria minha bolsa e procurava pelo analgésico que o médico me receitara. O relógio em cima do objeto de madeira indicava que eram 5h56; se eu tivesse tido quatro horas de sono achei ser muito. Quando achei o remédio, fui até o mini bar em busca de água e o tomei. Em seguida, peguei um roupão e me dirigi ao banheiro.

          Tirei minhas roupas e as entulhei no canto da porta, não me importando com o fato delas ainda estarem limpas, em perfeito estado de reuso, em contraste com o chão do banheiro. A limpeza do hotel parecia estar em dia, claro, mas todos sabemos a quantidade monstruosa de bactérias que costumam habitar aquele específico cômodo. Foquei na minha imagem refletida no espelho acima da pia. Se antes eu já sentia que me faltava um esforço para me tornar uma pessoa meramente apresentável, no momento eu percebia o longo e tortuoso caminho que eu precisaria percorrer para me reestabelecer como alguém que se preocupava e cuidava de si todos os dias.

          Meu cabelo, longo e castanho, estava opaco. Os fios apenas caíam para baixo com a ajuda da gravidade. Minha pobre pele exibia ressecamento e palidez; não duvidaria em nada se alguém me dissesse que eu estava com carência de vitamina D. Ignorando todos os outros sinais que indicavam que eu não ligava para minha aparência, pois já estava cansada daquele hábito nada saudável que eu desenvolvi, meus olhos desceram até meu pescoço, onde uma mancha escura me chamou a atenção. Por um instante pensei em negligenciá-la e estava para continuar com o plano de tomar uma ducha quando um pensamento pipocou. Pus uma mão em volta do pescoço, com meu polegar parando a milímetros de distância do pequeno hematoma.

          Cenas curtas me passaram em flashes enquanto eu mantinha minha mão ali, com a outra apoiando meu pulso. Imitei a pressão que Daniel aplicara em meu pescoço naquele dia e observei as veias dos meus olhos começarem a se tornar cada vez mais vermelhas. Meu rosto foi mudando de cor à medida que eu continuava a aplicar alguma força com as mãos e o ar me faltava. Perguntei-me se era possível alguém se matar daquele jeito, pressionando sua própria garganta por alguns minutos. Ou se de alguma forma o instinto de sobrevivência poderia interferir naquela ação que só poderia ser levada ao fim por um segundo sujeito.

          Fora só quando eu finalmente senti que meu pulso fora reduzido mais que o normal que afrouxei as mãos, que logo tombaram ao meu lado. Uma tosse frenética se deu a partir daí, juntamente com a dificuldade para voltar a respirar normalmente. Diferente do que ocorrera naquele dia, uma vez que Daniel me acertara tão precisamente na cabeça que eu acabei por desmaiar. E, como não se dera por satisfeito, como soube pelo laudo médico, ainda aferiu-me mais alguns socos e chutes. Eu fora seu verdadeiro saco de pancadas.

          Duas batidas na porta fizeram-me despertar do meu transe e forcei-me a controlar minha respiração. Evie chamava-me pelo outro lado com uma clara preocupação em sua voz. Engoli em seco e a respondi da melhor maneira dizendo que estava tudo bem, para ela voltar para a cama. Esperei alguns segundos e, por mais que eu não tenha conseguido ouvir seus passos, acreditei que ela tinha acatado ao que eu dissera. Prossegui com o que tinha de fazer e entrei no box para tomar meu banho.

          Quando acabei, procurei em minha mala por uma das minhas melhores roupas de trabalho: um vestido acinturado bege claro e de gola média. Pus o vestido, envolvendo a cintura com um fino cinto preto e penteei o cabelo molhado para trás, cuidando para que as pontas não estivessem pingando água. Olhei para o relógio que então marcava 6h45 e voltei minha atenção para minha pequena Evie. Como eu instruíra, voltara a dormir, com seu peito subindo e descendo devagar, de acordo com sua respiração leve. Não queria acordá-la, mas precisava sair dali e fazer algo. Precisava acabar com aquele dia antes mesmo que ele pudesse começar.

Um pedaço de mimWhere stories live. Discover now