Capítulo 5

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A noite passou despercebida. Adentrei a madrugada incomodado com as socadas que a vizinha de quarto levava. A mais alta música era incapaz de abafar seus gemidos. Por mais compulsivo que fosse, não me excitava com aquilo. Poderia bater na porta e enfeitiçá-los. A distância minhas habilidades praticamente se anulavam. Como os sonhos não me povoavam a mente, pulei da cama e fui me divertir. Três batidas foram necessárias para calá-los. Mas já era tarde. Novas batidas trouxeram a menina ao vão da porta, provavelmente ainda nua. Seus olhos castanhos logo perderam o brilho apaixonado, ela escancarou a porta, deixando o namorado atordoado. Sua inibição se perdeu em segundos. Continuaram transando no corredor que levava ao banheiro de uso comum. Eu os assistia com certo desinteresse. O pênis do sujeito era grosso e nada mais. As socadas acabaram por despertar outros moradores. Corri para o meu quarto, e deixei os amantes se recuperarem. Não foram rápidos o bastante. Uma porta se abriu e a algazarra teve início.

Na manhã seguinte segui para o hospital arrastado. De que me adiantava ser especial, se tinha de seguir uma rotina desinteressante de trabalho como os demais? E gratuito, ainda por cima! Estudantes da área da saúde ganham conhecimento, e não dinheiro em seus estágios. O governo contratava menos, pois a mão de obra gratuita implorava para estar dentro de um hospital. O que dizer da geração Grey's Anatomy? Ao menos tínhamos superado a ideia do médico todo poderoso instalada na mente dos jovens com a série House. Ninguém ali dominava toda a medicina, eram bons em suas áreas e fim. Eu desejava ser, cada novo dia, um sujeito melhor. Deixando a arte da dominação para os momentos de extrema necessidade. Contudo, era tão fácil deixar-me levar pela simplicidade da possessão. E eu tinha um trato a cumprir com meu superior. O brilho roubado dos olhos das pessoas permitia a sua existência neste mundo. Capachos, como eu, deveriam existir aos montes. Espero nunca cruzar com um deles.

A falta de sono me causou dor de cabeça. Até os poderosos sofrem as consequências do estresse mundano. Eu não estava tão acima dos reles mortais. Embora fosse mortal. Talvez a dor esteja me confundindo os pensamentos. Tomo um dipirona direto da ampola. Viver em hospitais permite certas regalias. Evoluo minhas pacientes e desço para a enfermaria da clínica médica. Um paciente aguarda minha visita. Há seis meses está assim, e o culpado continua indo ao seu encontro.

Um dia ainda libertaria aquela pobre alma das amarras do seu corpo frágil. Faltava-me a loucura necessária para desligar aqueles aparelhos. O infortúnio que o abateu se iniciou no primeiro momento em que me viu. Era um senhor de opinião e forte quando neste hospital adentrou. Meu erro foi ter negligenciado sua pressão arterial, que batia a mais de duzentos milímetros de mercúrio. No dia do seu derrame, por falta de tempo, esqueci de checar seu controle pressórico, e também não aferi sua pressão. Sua queixa de cefaleia passou despercebida em meio a visita. O médico preceptor até me perguntou dos controles e eu, temendo ser escorraçado perante os demais, afirmei que estavam dentro da normalidade. Na tarde daquele mesmo dia, um aneurisma se rompeu dentro da sua cabeça, e ele não mais voltou a ser quem era. Uma cadeia de negligências que culminou na completa perda de autonomia daquela criatura. Talvez fosse hora de assumir responsabilidade e levá-lo dali.

Todos os dias, sentava-me ao seu lado e possuía sua mente, sentindo na pele a imobilidade de um corpo que não mais pertencia a alguém. Estava preso junto dele. A cada nova sessão, o senhor esvaziava-se, partindo aos poucos, como em um homicídio a longo prazo. Aquilo acalmava meu coração. Cada dia mais distante da própria realidade, entregue as incertezas de um outro mundo. 

DevoradorWhere stories live. Discover now