Querida A

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Eu acordei cerca de cinco e meia da manhã. Não sabia o que fazer para o tempo passar, então simplesmente o usei para pôr em ordem meus pensamentos. Não funcionou como o esperado, na verdade, eu nem sequer esperava que funcionasse de fato. Eu não consiguia me lembrar do que aconteceu e, cada vez que olhava o relógio, era uma pontada no meu coração, um frio na minha barriga e uma dor invadindo minha cabeça.

Mas nada disso foi suficiente para me desviar desses vagos flashbacks que me atormentavam.

Então simplesmente levantei, andei pela casa como se estivesse procurando algo, e eu estava.

Estava procurando respostas, não importava se eram boas ou ruins, de onde vinham, ou para qual pergunta. Eu apenas as queria. Não lembrara nada que tenha ocorrido na noite anterior, nem sequer lembrava como havia parado em casa. Ou onde estava.

E meu Deus, como sou brilhante! Eu poderia apenas procurar evidências em meu celular.

Isso é, se ele estivesse carregado. Logo conectei com o carregador e enfim com a tomada, só me restava esperar.

Andei até a cozinha, abri a geladeira praticamente vazia e tirei um copo d'água, para só então notar o gosto horrível que tomava conta da minha boca. Eu certamente havia bebido, não sei o que ou quanto, mas eu havia bebido.

Logo memórias começaram a me visitar sem serem convidadas.

Eu sabia que esse gosto era familiar, uvas secas e álcool, era indiscutivelmente Ráki. Bebida nacional da Turquia, teor alcoólico entre quarenta e quarenta e cinco por cento, minha bebida preferida depois de bud light lime, mas me negava a acreditar que só isso foi suficiente para me deixar neste estado.

Continuei minha caminhada pelos corredores estreitos em direção ao banheiro me perguntando onde meus pais estavam. Mas como sempre, novos questionamentos mudaram meu foco. Ao me deparar com meu reflexo no espelho velho e manchado, desajeitadamente pendurado na parede em frente a mim, percebi que havia chorado, não só percebi como me lembrei de ter chorado como uma garotinha que perdeu seu brinquedo favorito. Ou melhor, como o brinquedo da garotinha, que foi largado no porão sem mais nem menos.

"Eu não posso culpa-la, é só uma garotinha." -, pensei comigo mesmo. Ah se ao menos fosse. Eu poderia perdoa-la por tudo. Mais do que isso, eu poderia me perdoar por tê-la deixado fazer tudo, como um verdadeiro brinquedo.

Voltei para a sala e verifiquei o celular. Trinta e cinco por cento. Bem, deveria servir.

Liguei o dispositivo e esperei aqueles três minutos insuportáveis para que estivesse tudo em ordem.

Duzentas e quatro mensagens. Não queria responde-las no momento. Abri a galeria e me deparei com fotos borradas e trêmulas, porém os vídeos me chamaram mais atenção. A maioria me confirmou o que eu já sabia; bebi e chorei. Já outros, fizeram meu estômago revirar. E não só porque mostrava o quanto tinha passado mal, mas porque me causavam angústia, porque me traziam à realidade, ao que havia me tornado, ao que ela indiretamente me tornou.

Até que vi o último vídeo e percebi que não cheguei aqui sozinho. Uma das minhas melhores amigas, querida A, me trouxe em seu carro. Eu deveria me lembrar de sempre contar com ela, que sempre foi minha "Deus ex-machina".

Nós estávamos cantando "Flaming hot cheetos" da Clairo e dançando. Eu me engasguei algumas vezes por estar bebendo a água que ela havia me dado.

Pausei o vídeo e decidi ir até sua casa, talvez querida A pudesse me ajudar a lembrar.

Passei rapidamente pelos corredores, parei ao lado da porta para pegar meu casaco que estava pendurado nos cabides de mármore na parede e abri a porta tomando coragem.

Cada parte daquela rua, cada quarteirão e semáforo que atravessava, me trazia um pressentimento ruim.

Mas querida A me ajudaria a lidar com isso, querida A nem sequer ligaria para o horário.

Chegando a casa dela, simplesmente peguei a chave embaixo do anão de jardim e abri a porta. Entrei devagar para não acordar ninguém e causar problemas e me deparei com a pior cena possível. Os pais dela estavam sentados no sofá aos prantos com os meus pais. Me levou a crer que algo ruim teria acontecido, esperava que querida A estivesse bem. Eu não sabia o que fazer, então abracei minha mãe, mas não houve reação. Perguntei o que estava acontecendo, mas não houve resposta. Antes que eu pudesse entrar em pânico, percebi algo que respondeu todas as minhas perguntas, ou quase todas.

Minha mãe segurava uma foto minha enquanto lamentava chamando meu nome. Rapidamente peguei meu celular e continuei o vídeo a partir de onde havia parado.

E somente aí a ficha caiu. Eu estava tão envolvido com a música e A rindo de minha dificuldade em exercer uma tarefa tão simples como beber água, que não olhamos para a estrada.

Então um cervo apareceu diante de nós, desviamos para não machucá-lo e acabamos por bater em um poste de luz.

Pobre A, sempre me seguindo para todo lado, até mesmo para a morte. Minha primeira e última desilusão amorosa. Com quem e por quem vivi, sofri e morri. Desde sempre e para sempre, minha garotinha.

Querida AOnde histórias criam vida. Descubra agora