(Parte 1)

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          Um gélido toque em minha coxa me fez despertar. Tornei a encarar o teto com um olhar pesaroso, tentando me habituar à claridade no qual o quarto já havia mergulhado. Toquei o lado da cama que antes havia encostado, os lençóis frios me sugaram, deixando ainda mais notável o vazio dali. Suspirei e o encarei. Encarei. Encarei. Encarei até perceber uma sombra se aproximar e outro gélido toque me despertar de vez.

— Bom dia! Como você está se sentindo? — Quis saber. Sorri um sorriso preguiçoso em resposta e o puxei para mais um beijo. Um pingo de água caiu de seu cabelo direto em minha bochecha. Passei os dedos para secá-la e o movimento logo me trouxe memórias que pensei ter enterrado em um lugar distante na minha cabeça. Quando então senti um frio se espalhar por meu corpo, se esticando até a ponta dos meus pés, decidi que era hora de levantar.

          Banheiro, armário, cozinha e banheiro novamente. Antes de ir, passei no quarto de Evie para apressá-la. Toda manhã era a mesma rotina com ela, sempre a encontrava na cama, extravasando seus cinco minutos a mais de sono. Para minha surpresa, no entanto, a peguei sentada em sua escrivaninha, encarando a tela de seu computador quase como se estivesse hipnotizada.

— O que a senhorita está fazendo? — Olhou para mim como se estivesse sido pega no flagra, suas bochechas se tornando maçãs frescas de imediato. Cerrei os olhos para ela que logo soltou um riso nervoso, se encolhendo toda enquanto eu me aproximava.

— É só um vídeo que eu quero ver, mãe. — Na tela só havia uma pequena roda branca girando com um borrão atrás. — Você pode ver comigo, mãe. — O relógio me permitia alguns minutos, então sentei na cadeira com Evie em meu colo e esperamos o vídeo terminar de carregar.

          Nesse meio tempo, lhe lembrava de suas tarefas que, a cada uma, ela respondia com um "feito". Minha garota, tão crescida e tão inteligente. Meu coração se enchia de orgulho com cada uma de suas realizações, desde seu primeiro sorriso até sua primeira nota máxima. Sentia que nada que fizesse poderia me decepcionar, o que só aumentava meu medo de que aquele sentimento não fosse recíproco. Receios de mãe de primeira viagem.

          Quando o vídeo finalmente carregou, um homem, que eu reconheci ser um dos famosos apresentadores de talk show, começou a introduzir sua próxima atração e foi só aí que eu percebi que se tratava de uma entrevista. Podia sentir Evie vibrando em meu colo de tanta empolgação, até mesmo eu estava curiosa para saber onde aquele bloco do programa iria dar. Então, como em um choque entre dois carros em alta velocidade, meu coração urrou, mexendo com todas as partes que compunham meu corpo.  

— Ai, mãe! — A tensão era tanta que não percebi que estava apertando Evie. Soltei-a e me recompus. E tentei novamente me recompor. Seu rosto e sua voz estavam por todo canto ultimamente, fosse pela internet ou na cidade, lá estava ele. Por isso não conseguia entender minha surpresa.

          Evie era sua fã. Com muita frequência nós ouvíamos suas músicas no carro ou em casa, mas raramente parava para analisar suas letras. Evitava pensar se um dia poderia ouvir algo sobre nós. Mas quando acontecia, minha mente fazia uma viagem estudando cada palavra que a melodia cantava, tentando conectá-las com o que havíamos vivido. Entrava numa perfeita máquina do tempo, simplesmente deixando a melancolia tomar conta. 

          Ele havia percorrido um caminho tão longo desde que nos vimos pela última vez. Podia imaginar as vibrações de vitória que deve ter sentido quando percebeu que, enfim, seu sonho se tornara realidade. Encarei a tela por toda a entrevista, sem realmente prestar atenção no que falavam, apenas o observando. Como aparentava estar relaxado, mesmo com sua postura nunca falhando. Como parava para assimilar o que lhe era falado e parecia sempre dar a resposta certa, até quando não existia a errada. E, principalmente, como seu rosto se desenhava quando sorria. Aquele desenho que eu conseguia trazer à tona tão facilmente tempos atrás. Peguei-me imaginando se ainda tinha a capacidade.

Um pedaço de mimOnde as histórias ganham vida. Descobre agora