Guarda-chuva

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Chovia. E era uma maravilha que estivesse chovendo.

Seu hábito de sempre levar o guarda-chuva na mochila era alvo comum de comentários irônicos. Mas, nessas horas, era invejado e visto como sábio. O objeto não era pesado, não ocupava espaço, e quebrava o galho, se mostrando extremamente útil em situações como essa, quando a chuva surge sem previsão.

Voltava da faculdade, uma das últimas aulas do ano, e tentava fugir do estresse pré-TCC e pós um ano solteiro. Buscava, como de costume, refúgio nas músicas do iPod enquanto esperava o transporte público vencer a distância até sua casa.

Ao final do trajeto do primeiro ônibus, porém, a melodia nos fones de ouvido já não era tão necessária. Os pingos caindo e o som da brisa levando embora o calor que até poucos minutos abafava a cidade e o ânimo eram irresistíveis. A canção continuou tocando, mas a água e o vento se tornaram a atração principal.

Trocou a parada tradicional por uma mais adiante, rota alternativa que escolhia dependendo de algumas variáveis (o cansaço e o clima), e nunca antes tinha sido tão feliz com tal decisão quanto dessa vez, por apenas um pequeno motivo, que mudaria sua perspectiva de vida de uma forma ao mesmo tempo mínima e inestimável, e que jamais imaginara ser possível.

Desceu com o guarda-chuva em mãos e observou outros passageiros saírem correndo, alguns segurando qualquer coisa acima da cabeça, tentando evitar se molhar. A intensidade dos pingos estava aumentando, mas continuava quente, e o vento não se fazia muito presente.

Atravessou a primeira faixa da avenida. Era uma avenida a princípio movimentada, mas na verdade vazia se comparada com uma perpendicular a essa, por onde passava o fluxo maior do trânsito. Ali era muito fácil de atravessar a pé mesmo fora da faixa de segurança, e muito raro precisar esperar no canteiro do meio até haver uma folga para continuar até a outra calçada, mas dessa vez foi necessário.

Enquanto estava no ônibus, já tinha avistado pela janela uma silhueta parada no canteiro tentando atravessar. Quando chegou lá, notou a que silhueta embaçada pelo vidro pertencia a uma moça. Estava de costas. Ela não estava na mesma reta por onde ele caminhava para cruzar o canteiro, mas ele foi até ela como se estivesse. Não pensou em ir lá fazer o que acabou fazendo, mas foi e fez.

O cabelo ondulado longo, parecia ruivo, já estava quase encharcado. A camiseta branca estava molhada, e já não era possível contar as marcas de gotas d'água na saia. Assim que chegou atrás dela, percebeu que usava óculos, como ele, e talvez tenha sido esse o impulso final. Esqueceu completamente que continuava com os fones de ouvido quando estendeu o braço com o guarda-chuva sobre a cabeça da moça. Antes que ela percebesse que os pingos tinham parado de agredi-la, ele tirou o fone da orelha direita...

Jamais esquecerá o sorriso de agradecimento e a expressão de surpresa na voz quando ela se virou e viu que um jovem mais ou menos da mesma idade que a dela estava oferecendo uma carona de guarda-chuva até o outro lado da rua. Algo tão simples, tão passageiro, mas ao mesmo tempo de uma gentileza que poderia surpreender o mais amargurado.

Logo em frente ficava a entrada de um prédio de escritórios. Esperaram juntos mais alguns segundos, e então partiram. Quando chegaram na calçada, não pararam, mas simultaneamente diminuíram o ritmo, trocaram um olhar.

– Tu vai entrar aí? – ele perguntou.

– Sim. – respondeu ela, ainda sorrindo.

– Ah, tá bem, eu vou até a outra parada.

– Obrigada de novo, viu?

***

Nunca mais se viram.

Mas a moça que pegou carona no guarda-chuva de um estranho deixou a depressão escorrer com a chuva daquele dia, trabalhou até dezembro, se demitiu, juntou as economias, e viajou para a Escócia, onde hoje faz mestrado em História e pesquisa a cultura dos celtas, o que sempre foi seu sonho.

O moço do guarda-chuva continua concluindo a faculdade que não gosta, está longe de realizar seus sonhos, mas até hoje se lembra do sorriso daquela desconhecida que ele ajudou a atravessar a rua e pensa com alegria...

Chovia. E era uma maravilha que estivesse chovendo.

Guarda-chuvaWhere stories live. Discover now