Central (Cap.2)

17 1 0
                                    

 "Congelar replay."


 No meu último teste de desempenho, perguntei aos oficiais avaliadores o que era preciso para ter sucesso na Central. Um deles disse que eu deveria estar preparada para ceder uma parte de mim mesma. Cada aprimoramento permite avançar na linha de comando da PROJETO -- ao custo de uma fração cada vez maior da minha pessoa original. Sem rodeios, eu disse que ninguém sensato pagaria um preço tão alto, ao menos não por um mero pedacinho limpo de silício e um logotipo pomposo.

Eles riram. E depois me promoveram.

A imagem à minha frente tremulou com uma onda de estática. O holograma tridimensional do corpo do médico estava suspenso naquele que seria o seu último momento de vida. Seu olhar estava voltado ao céu e sua expressão era um misto de medo e resignação. A centímetros de sua cabeça, via-se um arco vermelho emanando de um rifle de pulso; dali a dois ou três segundos, o plasma concentrado abriria um buraco no crânio do homem.

"Você parou antes da melhor parte, Vi".

Mosley, meu novo parceiro designado, espreguiçou-se e bocejou. Os músculos de sua juventude haviam perdido a luta contra a gravidade e agora pendiam flácidos de seu corpo; afinal, combater o crime de trás de uma mesa garantiu que ele não perdessse as pausas para um lanchinho.

E esse aí tem fome mesmo. Percebi pela terceira vez que Mosley não tirava os olhos do meu cubo de dados, um presente pela minha promoção. Minha nova capitã o havia largado em minha mesa de manhã, junto com seus sinceros parabéns e o meu novo parceiro olho-gordo.

Finalmente, Mosley cedeu à sua ganância: ele pegou o pequeno cubo da mesa e começou a brincar com ele entre os dedos.

"Você ainda não instalou essas novas subrotinas?" Sua voz soava artificialmente suave enquanto ele se remexia nervosamente.

Estalei os nós dos dedos.

Minhas manoplas ATLAS estavam sobre a mesa. Grandes e grosseiras, elas eram um dos acessórios padrão dos agentes nos setores inferiores. A maioria dos recrutas as aprimorava rapidamente para aumentar a distância entre eles e aqueles que eles precisam mandar para a cadeia, mas eu nunca me importei com a proximidade. Seu poder contundente caía como uma luva para mim e, sem nenhum programa permanente instalado, não havia risco de o circuito ser contaminado pelas memórias de outra pessoa. Ainda assim, eu havia recebido alguns olhares tortos durante a prova de treinamento da Central, mas o agente certificador parou de rir quando cravei um gancho com minha luva direita no peito de um manequim de titânio.

"Você só está perdendo tempo mesmo", continuou Mosley. Infelizmente, ele interpretou o meu silêncio como permissão para continuar falando. "Um médico infeliz com um final infeliz. Fim do caso. A capitã quer saber quando a gente vai consertar aquele elevador, não dá mais pra atrasar tanto os passageiros".

Eu o ignorei. Nos distritos mais baixos, os nossos finais infelizes não costumavam envolver deionização cranial a cem metros de distância com um rifle de pulso não registrado. Tinha sido um ataque profissional. Voltei minha atenção à I.A. no recinto.

"Continuar revisão. Voltar".

"Especifique o incremento temporal", solicitou a voz artificial. Nem o scanner de vídeo parecia ter vontade de rodar o programa.

Comecei a sentir a onda de frustração subindo à minha cabeça. Eu só estava ali desde 0600, e os regulamentos do setor superior já eram mais irritantes do que os níveis de montagem e seu mar de sucata até os joelhos.

O que eu precisava era de uma boa perseguição, talvez esbofetear umas coisas no meio do caminho. Teria sido o suficiente. Eu suspirei alto e soprei o cabelo do meu rosto.

Primeiro dia, Vi. Comporte-se, faça amigos, não dê socos em nada. Eu repeti meu mantra matinal e respirei fundo.

"Três... não, quatro segundos", eu disse à maquina com toda a paciência que me restava.

A imagem tremulou de novo, mas desta vez o modelo holográfico voltou um pouco na gravação. Fiz a análise balística do feixe de luz no momento em que ele entrava na área da câmera de segurança fora do elevador. O interior do elevador estava totalmente escuro... o que significa que as imagens de segurança tinham sido modificadas. Aquele ponto de luz suspenso no ar era a minha única evidência.

"Com base na entrada de dados balísticos, extrapole a altura do suspeito e o tipo de arma", eu disse.

Algumas luzes piscaram no escuro e a máquina zuniu enquanto fazia os cálculos. Um delineado poligonal foi traçado em finos raios de luz neon. O assassino era uma criatura alta... mas, fora isso, a renderização não tinha me dado muito mais pistas.

"Nada disso é real", murmurei. Nos setores inferiores, não trabalhávamos em casos usando vídeos holográficos mirabolantes. "Como esperam que a gente encontre algo só analisando um modelo de computador?"

"Erro de solicitação. Por favor, repita a pergunta." Me perguntei se a I.A. tinha sido programada para nos tratar como crianças - ou talvez aquela em particular tivesse herdado a personalidade de seu criador.

Mosley riu. "É assim que as coisas funcionam aqui em cima, detetive." Ele deu ênfase ao meu novo título, tentando reforçar que eu estava livre das amarras do setor inferior. "Às vezes passa um rato pelas frestas, mas enquanto as luzes estiverem acesas acima das nossas cabeças, está tudo bem. E pensa bem: a gente agora é limpinho e cheiroso".

Depois dessa consolação meia-boca, eu já estava rangendo os dentes. Parei de analisar a simulação e olhei para Mosley: eu não podia culpá-lo. Ele ainda estava bastante focado no cubo de dados.

"Mas e aí, você vai instalar isso ou não?", perguntou ele.

Desliguei o vídeo holográfico, afinal, aquela luz projetada não me daria mais nenhum dado útil. "Não confio em aprimoramentos", disse eu em voz baixa.

Ele finalmente olhou para mim. "Garota, isso aqui não é uma sucata qualquer do setor lá de baixo". Ele me mostrou o cubo novamente. "Isso aqui é para valer, o negócio veio lá de cima". O cubo refletia as luzes do console de vídeo, destacando o triângulo invertido do laboratório corporativo da PROJETO. "Sabe, ele é novinho, ou ao menos foi formatado adequadamente".

Estava claro que Mosley queria o cubo. Esfreguei a nuca.

"Eu instalei um desses recentemente, há menos de um ciclo", menti. "Não quero sobrecarregar". Peguei minhas velhas manoplas da mesa. "Além disso, essas luvas ainda funcionam bem". Estendi a mão para que ele me devolvesse o cubo.

Mosley produziu um suor fino enquanto se esforçava para manter a cortesia social. Ele parecia estar lutando contra a vontade de instalar as subrotinas ali mesmo, mas no fim simplesmente franziu o cenho e entregou o objeto.

"Minha próxima atualização é daqui a um ciclo. Se, no fim, você decidir que não quer mais...", ofereceu ele.

Eu me virei e comecei a andar em direção à saída.

"Sim, eu te aviso", disse por sobre o ombro. "Parceiro".

"Ei, aonde você vai?" Havia um traço de preocupação na voz de Mosley, embora bastante sutil.

Coloquei minhas manoplas e entrei no elevador.

"Vou colocar a mão na massa".

PROJETO: CAÇADORESOnde histórias criam vida. Descubra agora