1. A Queda

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"Sou o tempo que percorre cambaleante

Não sou antigo

Nem novo

Sou o que circunda

que paira

e sobrevive" (Empatia, Bia de Mello)

Quando meu filho morreu existiam 12 pessoas próximas que poderiam salvá-lo

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Quando meu filho morreu existiam 12 pessoas próximas que poderiam salvá-lo.

Metade delas apenas observou ele escalar até chegar à borda da passarela. Foram coniventes, não fizeram nada para ajudá-lo, e quando Damien ameaçou pular apenas pegaram os celulares para gravar.

O primeiro vídeo que assisti não tinha som algum, era apenas meu filho conversando com um policial, que tentou remediar a situação. Havia lágrimas e suor escorrendo pelo seu rosto e o desespero cortou meu coração.

Em certo momento o oficial, um homem negro, um pouco acima do peso e de semblante preocupado estendeu a mão e por um segundo pareceu que tudo ficaria bem. Damien estava prestes a desistir daquilo — vi isso em seus olhos —, mas a esperança se foi quando ele olhou para a câmera e mudou o semblante.

 Damien estava prestes a desistir daquilo — vi isso em seus olhos —, mas a esperança se foi quando ele olhou para a câmera e mudou o semblante

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Disseram que ele não faleceu imediatamente. A ambulância ainda tentou socorrê-lo, mas não chegaram a tempo ao hospital.

Quando recebi a notícia, sabia que havia sido suicídio. Afinal, todos os dias tentei ignorar a cabeça caída, as respostas curtas e a falta de ânimo do meu filho. A tristeza dele era evidente e não me esforcei o bastante para conseguir alcançá-lo.

— Gay? - lembro de repetir a palavra, incrédulo.

 É, pai. Sou gay.

A lembrança não era nítida, mas me recordava do medo dele. Eu também estava com medo.

 Não vai dizer nada? - ele perguntou, esperançoso.

 Não, não vou. Por favor, nunca mais fale disso perto de mim ou de qualquer pessoa que eu conheça, entendeu? Não quero um "gay" na minha família.

Dois dias depois da tragédia e lá estava eu, preparado para assistir ao segundo vídeo que caiu na internet.

Minha ex-esposa, Judith, conversava com o advogado sobre os procedimentos jurídicos após o óbito e tentei acompanhá-la, na tentativa de não ser um inútil total. Para a ocasião, vesti um paletó e uma gravata, porém minha aparência ainda era desleixada. Meus olhos estavam vermelhos por conta da bebida e não consegui limpar os sapatos antes de sair de casa.

Fiquei com o celular na mão e tentei me distrair on-line, desliguei as chamadas e desinstalei o aplicativo de mensagens por não aguentar mais ouvir pêsames e justificativas de porquê as pessoas não iriam ao enterro. Não sei como, mas cheguei ao link do vídeo e após alguns minutos resolvi apertar o play. 

Na tela do celular a cena era a mesma que vi inúmeras vezes, porém de um ângulo diferente. Dois homens próximos a passarela conversavam.

... um filho da puta desses - disse quem gravava - O policial foi para um lado, ele foi pro outro, o lazarento!

 Agora vai - disse alguém próximo.

 Vai! Anda logo, filho da puta. Pula logo!

Damien olhou na direção deles e se afastou do policial.

A queda durou poucos segundos e os gritos das pessoas ao redor me fizeram tremer.

- Caiu!

Foi! - o homem pareceu animado - EITA PORRA!

— Cê filmou, mano?

 Filmei.

 Porra. Manda pra mim.

Assim que a cena acabou deixei o celular cair. Senti uma tontura forte e, sem aguentar a barra, vomitei.

Judith correu porta a fora quando ouviu que havia algo de errado comigo e se surpreendeu com meu estado.

— Meu Deus! - disse ela, em pisadas fortes e barulhentas, andando com dificuldade por conta do tamanco - Jonas, você está bem?

Não consegui responder. A cena ainda estava na minha cabeça, me causava ânsia e tive que lutar contra a vontade de vomitar outra vez.

Eles o incentivaram. Damien estava prestes a desistir e ir com o policial quando ouviu os gritos para pular. Guardei o celular para Judith não ver nada daquilo, me atrapalhei e quase escorreguei na bagunça que fiz tentando ir embora. Minha ex-esposa chamou meu nome, mas a ignorei completamente e desci as escadas cambaleando.

Ainda era minha culpa, eu havia levado ele até aquela passarela quando não aceitei o que meu filho era, mas aquelas pessoas... O que elas fizeram foi repugnante!

Caí em algum canto assim que cheguei à rua, coloquei as mãos na cabeça e não contive as lágrimas. Sem saber para onde ir, caminhei sem rumo até alcançar um bar qualquer. Abandonei a gravata, pedi que aumentassem o som do estabelecimento e depois de tirar todo o dinheiro da carteira me deixei ficar bêbado. Meu descontrole foi grande, sequer me lembro do que ocorreu para conseguir uma briga, mas bati em alguém até as juntas dos meus dedos ficarem vermelhas.

Foi no meio da madrugada que abandonei o bar com uma garrafa de vodca na mão. Peguei chuva, gritei e soquei uma parede por conta da raiva. A dor era insuportável.

"Um pai não deveria viver mais que um filho", ouvi essa frase tantas vezes que perdi as contas. Por mais fraco que eu dissesse que Damien era, nunca pensei que ele fosse capaz de algo assim.

Me deixei levar pelas vielas dos bairros até entrar em um prédio no centro da cidade. Subi as escadas e dormi abraçado à garrafa, na tentativa de esquecer a tristeza.

Foi após algum tempo na escuridão que a porta do corredor onde estava se abriu e um garoto de cabelo platinado, magro feito uma tábua e de cabelo batendo nos olhos surgiu.

— Professor Jonas? - ele perguntou, surpreso.

Me levantei e tentei parecer sóbrio, por mais difícil que fosse a tarefa. Estava tonto e fraco, então precisei me escorar em uma parede para não desabar.

— Yuri? É você mesmo?

— Sim, sou eu. - Ele me observou melhor e percebeu meu estado. - O que houve com você?Está tudo bem?

Ignorei a pergunta e cheguei perto do jovem até ficarmos frente a frente. Eu era bem mais alto que ele e o garoto se encolheu como uma criança assustada por conta da minha aproximação.

— Preciso da verdade - pedi, sendo mais direto agora. - Você foi namorado do Damien, não foi?

— Professor, eu... - ele esfregou um dos braços, nervoso - Realmente não sei o que dizer.

Aquilo foi a confirmação que eu precisava. 

Sorri para ele e tentei dizer algo, mas minha visão escureceu e desabei no chão. No fundo, acreditava que talvez fosse bom dormir e nunca mais acordar.

Lutador VerdeWhere stories live. Discover now