Berlim [Versão em Português]

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Essas ruas, essas paredes enegrecidas, escondidas sob o disfarce de uma demão de pintura, cerraram os seus olhos endurecidos quando a morte passou por aqui, fazendo ecoar o sinistro pisar cadenciado das suas botas pretas sobre o pavimento.

Agredia-se a vida com coronhadas e as pessoas fitavam por detrás das cortinas com os olhos fatigados.

Agora quase tudo veste-se com a cor do esquecimento. Embora todos saibam bem que nem as novas avenidas, nem os colossos hieráticos de vidro e concreto podem matar a memória.

Percorre-se essas antigas avenidas e quase não se fixa o olhar naqueles imensos jazigos de vidro, ferro e cimento que hoje cresceram por sobre as ruínas da Potsdamer Platz.

Mas neste momento eu me assemelho às filhas do Tempo.

Permanece-se emudecido contemplando as ruínas, o que está escondido sob a terra, nos escombros do Muro que os dividiu quarenta anos; os antigos bairros que, apesar de tudo, preservam o cunho de séculos imorredouros; os pátios arborizados, onde nos anos quarenta do século passado, as bombas vieram para derribar os telhados, as paredes, as portas, os sonhos e os anseios das pessoas.

Nos casarões que conservam as chagas dos projetil  que o exército vermelho disparou naqueles dias de maio de mil novecentos e quarenta e cinco, pondo final ao reinado do fascismo.

A ponte sobre o canal, donde soldados covardes alemães lançaram no ano de 1918,  o corpo já sem vida de uma mulher brava e lutadora: 

Rosa Luxemburg.

Estanca-se estarrecido. Estes são os rastros daquela Berlim dos anos vinte, onde todos queriam esquecer o ecoar dos canhões e imergir em uma festa infinita. E os outros vestígios, os da cidade aberta e combativa, onde os trabalhadores organizados eram milhares de vozes que se uniram para sonhar um mundo mais justo.

Berlim é tanta coisa. Acontecimentos, lágrimas, gritos de combate e de dor.

A máscara branca do Cabaret sob as luzes sinuosas dos in-felizes anos vinte.

Os movimentos de arte mais livre e transgressiva. E sempre o amor como uma mácula de luz sobre a superfície do assombro.

Injustiça e opressão em dois momentos: o dos nazistas na primeira metade do século; o do regime burocrático do comunismo da segunda metade.

 E por aqui cruzam —se observam, se desculpam, se cumprimentam ou se evitam—  os velhos carrascos e suas vítimas; os novos comerciantes dos impérios decadentes que hoje desfilam a sua indecência de marcas e do desperdício; os assassinos frios em seus carros de luxo; os arrebatados, os depositários, os hipócritas do dito mundo livre; os corruptos, os vendidos, os melindrosos. Os covardes descarados e traficantes. Aqueles que se refugiam sem desejo nem paixão nos delírios do álcool.


Porém também os filhos dos sonhos dos brindes floridos; aqueles fustigados pelo horror e pelo ódio; os solidários; aqueles que se aventuram pelos caminhos iluminados pela lua; os parias, os esquecidos, os idosos que tiveram que deixar suas casas renovadas e padecer nos limites da pobreza; aqueles que descobrem os segredos do mundo e da natureza; aqueles que amam e apreciam arte e cultura; aqueles que nunca se cansaram de sonhar; aqueles que vão nascendo frutos de uma nova percepção.

Aqueles que aprenderam o valor da ternura.

Todos os vi. Eu toquei as suas vestes.

De tudos conservo o musgo que cresce sem cessar nas entranhas deste

recanto do mundo, fecundo de história e sentimento.

E também a cidade está no meu sangue, em meus temores, no mais profundo do meu humilde destino. 

Porque aqui chegamos em uma tarde, quase no início da primavera, fugidos do horror. Buscando na estranheza do Norte frio e pálido, um refúgio para os ossos maltratados. E nos recebeu um sorriso solidário. Chegamos enfermos ​​de derrotas, e nosso tormento extravasou-se pelas ruas e Kneipen (bares)  como uma epidemia descontrolada. Mas a cidade nos foi conquistando ao longo dos anos. E chegou um dia em que despertamos próximos do amor, dos irmãos do seu sangue e do seu frio.

E claro amigos. Nunca mais as coisas voltaram a ser as mesmas. Tudo ganhou um outro sabor, uma outra essência. A língua emaranhava-se  em mil costuras para nomear o pão, o amor, a distância.

Nosso sangue esvaia-se dia após dia e a estranheza tornou-se uma forma de viver.

Chegou a amizade, as vozes, os silêncios.

Chegaram os primeiros cabelos grisalhos, a camisa de vinho sempre irmã.

O amor, os filhos , a ternura.

A descoberta das palavras antigas em uma nova língua.

A certeza de que o mundo é mais amplo do que o nosso olhar estreito.

E Berlim submergiu em nossa alma como alguém que se aproxima da sua madrasta.

Nunca mais poderemos romper o silêncio que nos abarca quando visitamos as suas ruas e miramos os olhos amigos que acompanharam essa longa jornada que a vida nos preparou.

Em Berlim, cidade de muros derrubados,

cidade de luzes e fantasmas,

cidade atada à uma história entrelaçada

na qual a morte bailava pelo ar,

encontrou-se os frutos da vida madura

como um milagre junto às pessoas mais amadas.

Porque aqui, nesse lugar e nesse momento sagrado, 

eu entesouro ​​o rumorejar do amor em toda sua profundeza.


Rolando Salas Cabrera

De Tránsito de Outoño. Espanha, 2008.


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