Capítulo 2 - O desencontro dos ponteiros

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Quando finalmente cheguei em casa encontrei meus pais sentados no sofá com uma nítida expressão depressiva em seus rostos, mas ao me verem abriram um sorriso que se misturou à lagrimas de alegria. Eles tentavam dizer algo, mas era quase impossível de se entender enquanto seus rostos estavam colados aos meus ombros e suas vozes eram abafadas.

Nós havíamos tido uma briga há quatro dias, eles insistiam que eu deveria largar a faculdade e começar algo que realmente fosse produtivo, algo que fosse me dar um futuro, porque aos olhos deles Artes Cênicas não era um bom caminho, essa discussão desencadeou muitas outras que resultaram em uma fuga apressada no meio da madrugada.

Fizemos as pazes, conversamos, eles compreenderam que meu futuro era só meu e me apoiaram na minha escolha, para comemorar resolvemos sair para almoçar. No meio do caminho para o restaurante contei para minha mãe que havia reencontrado o garoto no metrô.

— Depois de todo esse tempo reencontrá-lo foi muita sorte. — Minha mãe sorria enquanto se arrumava em frente ao espelho do carro. — Os pais dele eram terrivelmente rígidos, me lembro como se fosse ontem a mãe dizendo a ele que não acreditava que um garoto tão centrado havia feito tudo aquilo e ele encarando-a com um sorriso malicioso no rosto como quem não dava a mínima e no fundo achava até engraçado.

— E você lembra o nome dele? — Ela pensou um pouco, mas logo pediu desculpas por não se lembrar, entramos num túnel, tudo se escureceu.

Por algum motivo eu não conseguia esquecê-lo, fazia tempo que uma incógnita daquelas não surgia na minha cabeça e descobrir seu nome era como um desafio. Durante a conversa que tivemos ele comentou que estudava História perto do Butantã e fez uma piada meio sem graça sobre a viagem entre o Tatuapé e a faculdade, então eu sabia que em algum momento ele passava pela estação República.

Alguns dias eu alterava o caminho que fazia para ver se o encontrava, porém não tive muita sorte. Nosso primeiro reencontro aconteceu na estação perto de casa, o que não fazia sentido nenhum, porque não estava na rota que havia mencionado, mas antes de sair definitivamente do metrô eu esperava por alguns minutos e o procurava em meio à multidão, mas nunca obtive sucesso.

A probabilidade de encontrá-lo era quase mínima, era mais provável eu olhar aleatoriamente para o relógio e os ponteiros estarem sobrepostos do que encontrar uma pessoa que eu nem se quer sabia o nome no meio da multidão de oito milhões de passageiros que passavam por dia nas linhas férreas de São Paulo, mas apostar naquilo de alguma forma era atrativo, além de eu achar que não tinha nada a perder além de algum tempo do meu dia, o qual eu aproveitava para ler os livros da faculdade, mas foi nesse pensamento que conheci meu vício, daquele momento em diante meus segundos eram moedas de ouro as quais eu apostava contra um destino incerto, torcendo para que um garoto alto de óculos aparecesse e me salvasse da situação em que eu estivesse, porém, entrei no jogo sem saber das regras e até mesmo sem saber que estava jogando.

Era a terceira semana da minha busca pelo garoto, e novamente não havia conquistado êxito na procura, não havia desistido, mas era hora de voltar para casa. No meio do caminho comecei a me questionar se tudo aquilo não era um pouco de loucura, talvez eu estivesse exagerando e aqueles acontecimentos não passassem de mera coincidência, e quando estava prestes a seguir a rota de casa avistei um indivíduo encapuzado, com o rosto coberto por um pano e encostado em um carro, então achei melhor seguir pela rua de trás, nunca se sabe o que esperar de São Paulo. No meio do trajeto fui pega de surpresa com um estrondo forte que mais pareceu com um tiro que com qualquer outra coisa, seguido de outros estrondos e uma gritaria. Corri desesperadamente para casa e quando cheguei senti algo escorrendo pelo meu braço, havia sido atingida por um projétil na altura do ombro, em meio a euforia minha respiração travou, era minha asma.

Não fazia ideia de onde estava minha bombinha, meus pais ainda não haviam chegado e eu mal conseguia me mexer devido ao desespero. A cada segundo minha respiração piorava e mais sangue ocupava o chão da sala, sentia menos e menos ar entrando nos pulmões e então, tudo começou a rodar. Cambaleei de um lado para o outro, minha visão escurecia-se, eu não sabia muito bem o que fazer e não tinha muito tempo para pensar. Tentei caminhar em direção à escada para o meu quarto, mas não tive forças para subir o primeiro degrau e cai apoiada na cômoda, que com meu peso desabou no chão e espalhou por todos os cantos seu conteúdo, chaves, canetas, lápis e por muita sorte, minha bombinha de asma.

Num último suspiro estiquei meu braço e consegui alcançá-la, levei-a até minha boca e amenizei a situação, mas meu braço ainda sangrava, mas antes de tomar qualquer atitude meus pais chegaram, muito mais cedo do que o esperado. Ao ver o sangue rapidamente meu pai me pegou no colo e correu em direção à garagem, fui levada ao hospital.

Os médicos disseram que eu tive muita sorte e não corria risco nenhum. Minha mãe me contou que o porteiro do prédio havia ligado para eles, contado que eu subi as escadas desesperadamente sem dizer nada enquanto deixava um rastro de sangue no saguão do prédio e por sorte eles haviam saído mais cedo do trabalho. Contei para eles o que havia acontecido na volta para casa, que havia mudado a rota e sobre os disparos.

— Talvez aquele indivíduo encapuzado fosse um anjo tentando te salvar. — Meu pai disse enquanto esboçava um sorriso e passava a mão pelo meu cabelo tentando acalmar a situação. Ele era um homem extremamente religioso e muitas vezes conflitamos por causa disso, mas talvez aquelas palavras não estivessem completamente erradas.

Obviamente não era um anjo, mas realmente podia ser alguém tentando me salvar, podia ser Ele tentando me ajudar. Em todos esses anos morando no mesmo apartamento quase nunca havia visto carros parados naquela rua, ainda mais naquela hora, a rua não possuía comércio, estava frio demais para esperar fora do carro, fazia muito mais sentido esperar dentro, a não ser que essa pessoa soubesse que algo ruim aconteceria ali e quisesse que eu pegasse outro caminho, soubesse que a minha asma atacaria com tudo aquilo e colocasse a bombinha exatamente no lugar certo.

Sinceramente, ri de mim mesma. Estava tão aficionada com o garoto e tão assustada com a situação que me vi capaz de fazer ligações totalmente ilógicas. Ninguém jamais poderia saber essas coisas, até aquele momento homem nenhum fora capaz de dobrar o tempo, e naquele instante tive a oportunidade de seguir meu raciocínio e saltar para fora do jogo, mas teimosa que sou não podia dar o braço a torcer, ainda mais depois de ter levado um tiro nele.


Cara CarolinaWhere stories live. Discover now