Capítulo 02 - Tia

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Mal se lembrando de como havia retornado para casa no dia anterior, Elise acordou. O mesmo pesadelo insuportável a atormentou naquela noite, assim como na anterior. E na de dois dias atrás. Três. Quatro. Cinco. Já havia perdido a conta.

Porém, algo de diferente estava a poucos centímetros dela: o Kairós era uma novidade no criado mudo logo ao lado de sua cama. Durante o trajeto de volta, ela havia lido um pouco do manual detalhado do aparelho, e viu que o dispositivo era impressionantemente abrangente. Descobriu que, com ele, poderia apagar qualquer elemento físico que estivesse ligado ao seu passado. Ficou a pensar em coisas que poderia fazer e percebeu que não era algo tão fácil.

Uma pena ter de ser algo físico, Elise lamentou. Seu primeiro impulso era de apagar da mente de seus pais a ideia de saírem de casa naquela noite. Ou, quem sabe, apagar a briga de ambos enquanto seu pai dirigia.

Isso, claro, se essa tranqueira realmente funcionar de verdade.

Em seguida, se arrumou vagarosamente, sob a falta de vontade cotidiana de sempre, e desceu para o café da manhã.

- Caiu da cama? - sua tia Mirtes ironizou - Está apenas dez minutos atrasada hoje...

Elise ignorou e sentou-se para comer. Colocou o Kairós ao seu lado e lia o manual enquanto desjejuava. Mirtes se levantou para pegar o aparelho, em fúria, e Elise o tomou para si antes dela.

- Está gastando com celular novo? - espumando, sua tia ralhou - E a faculdade que se dane, é isso? Você mal consegue ajudar em casa e...

Tinha me esquecido dela e sua psicose por dinheiro...

Desde que Elise passou a morar com sua tia, cinco anos atrás, os assuntos financeiros sempre foram os mesmos. Os gastos com honorários dos advogados acabaram por esgotar o pouco dinheiro de que Elise dispunha. E, para somar, a indenização que a companhia de seguros lhe entregou só cobria uma vida, num valor irrisório. Tudo isso fez com que Elise desistisse da faculdade na qual estava estudando por pouco mais de dois anos.

- Eu achei... alguém esqueceu numa mesa do Passionate, então...

- Você foi de novo naquele antro de perdição? - Mirtes ficou rubra de raiva - Quantas vezes eu...

Elise, igualmente vermelha, bateu na mesa com o punho fechado, ainda segurando uma faca de manteiga.

- Vai se ferrar, caramba! Eu vou para onde eu quiser e eu faço o que eu quiser!

- Não faz, não! Você só mora aqui porque eu... EU pago as contas!

- Quem você pensa que é? Você não é minha mãe! - Elise estava a poucos gritos de ficar afônica - É só uma velha que me enche o saco todo dia! Vai pro inferno e me deixa em paz!

A reação de sua tia foi inesperada. Mirtes levou a mão ao peito, arfando.

- ... tia?

Mirtes desabou no chão. Elise entrou em desespero ao vê-la infartar na sua frente, e correu para pegar seu celular que estava no seu quarto, no andar superior. Telefonou imediatamente para o serviço de emergência.

- Uma unidade chegará em trinta minutos - a atendente lhe disse pelo telefone.

- Tudo isso?

- Está um caos hoje - a atendente lamentou - Houve um engavetamento nesta manhã na Avenida dos Autonomistas, com vários feridos. Estamos deslocando uma unidade na Zona Sul excepcionalmente para sua parente.

Elise desligou. Era uma brutal coincidência que, ao mesmo tempo que sua tia morria, um acidente com centenas de vítimas havia ocorrido numa avenida não muito distante. Então, ela desceu as escadarias. Ela tinha de fazer algo.

- Socorro! Me ajudem! - gritou ao abrir a porta da casa.

Nem uma alma viva estava nos arredores.

Droga! Droga! Droga!

Não tinha carro, nem dinheiro o suficiente para pedir um táxi, então não tinha como levar Mirtes ao hospital por conta própria. Até que...

O Kairós!

Seus olhos foram ao encontro do aparelho. Deveria ser fé ou algo inexplicável. Rapidamente, Elise acionou o dispositivo e fez uma marcação na agenda.

«27 de março. 7h50min00s...»

O que eu poderia apagar? Mal sabia como o aparelho funcionava, então não tinha ideia de como o Kairós poderia resolver alguma coisa.

Pense, pense... Tinha de apagar algo que estivesse ligado ao seu passado e que envolvesse ela e sua tia. Por fim, Elise olhou para a mesa da cozinha e decidiu.

«... Saco de pães.»

O mesmo dia, algumas horas atrás. Pôs os fones de ouvido conforme as instruções diziam e tocou no botão "Salvar".

Até quinze minutos para algo acontecer, ela se lembrou. Mas, de súbito, um áudio contínuo, como o de um monitor cardíaco quando um paciente morre, soou pelo aparelho e Elise sentiu seu corpo adormecer.

***

Elise não tinha ideia de como, quando ou o porquê, mas estava em pé, sozinha, no balcão da loja de conveniências de sua tia. Ao olhar no relógio do computador do caixa, notou que eram 9h18min.

O mesmo horário em que usei o Kairós.

- E minha tia? - falou alto, sem perceber que estava sozinha.

- Ela está bem. Talvez até melhor que você.

Elise tomou um enorme susto. Do nada, Chron, que lhe entregou no dia anterior o Kairós, estava à sua frente.

- Como você...

- Já lhe disse... Elise. Sei tudo sobre você - Chron respondeu, pegando uma caixa de cigarros que estava em uma gôndola.

Elise pegou o aparelho, que estava sobre seu balcão. Examinou suas orelhas, e os fones de ouvido ainda estavam lá. Ameaçou tirá-los, mas Chron não permitiu.

- Não os retire. A sincronização ainda não terminou - Chron explicou - Você só está confusa porque o Kairós ainda está sincronizando o passado em seu cérebro. Dê uma olhada na tela do aparelho.

Elise observou que havia um cronômetro regressivo. O tempo restante era de cerca de dois minutos.

- Assim que esse tempo passar, você pode retirar os fones. E você se lembrará de tudo o que aconteceu nessa linha do tempo alterada.

Elise suspirou. Era muita informação para sua cabeça processar. Chron continuou a encará-la de uma forma que a deixava desconfortável, então ela desviou seu olhar para o cronômetro do Kairós.

Cinco, quatro, três, dois, um...

Como um passe de mágica, sua mente foi carregada de "lembranças".

«Quando minha tia Mirtes chegou em casa, percebeu que havia perdido os pães que comprou. Eu disse a ela que comeria algo no caminho. Tomei o café da manhã aqui na loja com o Serginho. Fiz o fechamento de caixa e...»

- Então minha tia está...

- "Vivinha da Silva" - Chron completou.

Elise queria fazer inúmeras outras perguntas, mas sequer sabia por qual começar. Chron pegou o aparelho sobre o balcão e acionou um menu do aplicativo.

- Enquanto você não ativar o "modo completo", seu limite de tempo para alterar será de vinte e quatro horas e o tamanho das coisas que podem ser apagadas é o de uma mala de viagem. É o suficiente para você "brincar" com o Kairós. Se em uma semana, você não ativar o "modo completo" o Kairós parará de funcionar e você terá apenas um peso de papel em mãos.

Uma semana... Elise baixou a cabeça para pensar com calma. Era um tempo curto para tomar uma decisão tão complicada. Por fim, levantou a cabeça para responder.

- Chron, eu...

Mas ele, assim como antes, havia sumido como fumaça.

ELISE (amostra)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora