4. Apartamento 617

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Sirith sobrevoava a cidade grande, esquadrinhando as ruas e prédios através do plano astral. Era um dos raptores, um demônio inferior, pertencente à mais baixa hierarquia do inferno. Em sua forma espiritual, fazia lembrar um abutre depenado, com as pelancas saltadas e o pescoço muito longo, áspero e careca. As asas saíam atrofiadas das costas, o que complicaria suas manobras em voo não fossem as leis físicas do mundo astral, onde a gravidade não existia.
Do alto, avistou um conjunto habitacional suburbano, com muros grafitados, roupas penduradas nos varais e antenas de TV nos terraços. A paisagem além do tecido da realidade se apresentava em tonalidades opacas; era como se estivesse flutuando, contemplando uma civilização naufragada. Nas primeiras horas da madrugada, as gotas de chuva atravessaram seu corpo, mas ele não pôde sentilas – eram físicas e se projetavam feito ilusões, hologramas intocáveis através da membrana.
Sirith deu um rasante, vasculhou quartos e vielas, espiou dentro das casas, sendo que em algumas poucas não conseguiu entrar. Desceu sobre uma pracinha, aterrissou em uma quadra de futebol. Estava vazia, não havia um  humano por perto. Farejou as oscilações da película e enfim encontrou o que procurava. Deu uma guinada para cima, trespassou um poste de energia, fazendo a lâmpada piscar. Transpôs uma parede de concreto e deslizou pelo corredor de um dos edifícios mais altos, com dezenas de pequenos apartamentos. Parou em frente ao número 617 e pressentiu vibrações demoníacas. Cruzou a porta de madeira, para instantaneamente ressurgir do outro lado.
Dentro do conjugado, um aposento minúsculo e de j anelas fechadas, viu três jovens sentados ao redor de um tapete. Um deles era uma mulher, uma moça de cabelos escuros, que segurava um isqueiro em uma das mãos e uma colher na outra. Com as pontas dos dedos queimadas e as unhas escuras, ela acendeu a chama com o polegar, lentamente derretendo uma porção de farelos, que aos poucos foi se diluindo até se transformar em um extrato oleoso. Logo atrás deles, no plano astral, dois demônios se acotovelavam, espremidos como quem assiste a um espetáculo. Sirith os reconheceu. Um era Guth, uma criatura retorcida, de olhos rubros e repleto de perfurações pelo corpo. A tez era esverdeada e, por ser desprovido de genitália, era  impossível descobrir o sexo. À direita, deitado de barriga para cima, estava o diabo que chamavam Bakal, um ser magricelo com um imenso buraco no corpo, que atravessava o esterno. O coração ficava exposto, um órgão murcho e necrosado, com veias negras e
pregas vermelhas.
Um dos rapazes pegou do chão uma seringa usada, apertou o êmbolo, aproximou-a da droga e então a sugou. Com os músculos estremecendo, girou o punho para enfiar a agulha no braço. Quando o estendeu, Sirith notou que a superfície da pele estava rij a, cheia de furos e bolhas, lanceada por múltiplas penetrações anteriores. Moveu as asas para frente, levitando na direção de Guth, que ainda não lhe havia atentado.
– Ei – chamou os demônios. Evocou-os pelo nome profano, tal qual foram batizados no inferno. Assim como ele, eram espíritos de antigos seres humanos que haviam decaído ao abismo, abandonando sua identidade carnal e renascendo como figuras satânicas.
– Agora não. – Guth aguardava o jovem espetar o braço. – Não agora!
O rapaz pressionou a injeção e a substância correu para dentro do corpo, provocando uma sensação temporária de êxtase, desprendimento e elevação. Os joelhos relaxaram e ele desmaiou. Guth inspirou profundamente, experimentando as mesmas impressões, para com isso fortalecer sua aura, alimentada por constantes infusões de energia. O processo era ritualístico e levou cerca de dez minutos, quando finalmente a euforia acabou, dando lugar a um
mal-estar repentino – era a vez de Bakal entrar em ação.
Recomposto, Guth torceu a cabeça e voltou-se para Sirith.
– O que você quer? – O tom era severo.
– Sabe quem sou? – Eles já haviam se cruzado em algum buraco, mas era difícil lembrar da cara de todos. Os demônios não fazem amigos, apenas aliados passageiros.
– A mim parece mais uma galinha – escarneceu, mirando as asas defeituosas do raptor. – Diga logo para que veio, não vê que estou ocupado? – Ficou agressivo. – Está na minha área.
– Sou Sirith – apresentou-se o raptor, inabalável ante a zombaria. – Conhecemo-nos em Zandrak.
– Ah, sei – o diabrete baixou a voz. Em vez da inj úria, passou ao sarcasmo. – Sirith. A que devo o prazer?
– Escutei que é você quem controla este setor.
– Sim, sou eu mesmo – sorriu com ar sinistro. – Pegou-me no meio da rotina de trabalho.
– Tenho uma proposta. Que lhe apetecerá, estou certo. Guth ouviu respirações ritmadas. Olhou para a esquerda – Bakal estava trepado nas costas de um dos garotos, sugando toda a força que lhe restava, deixando-o vagaroso e sonolento.
– Desembucha, Sirith – exigiu Guth. – Chegou em hora pouco propícia.
– Serei sucinto, pois não há um instante a perder – avisou. – Localizei dois anjos no plano físico. Quero sua aj uda para capturá-los.
– No plano físico? – Tal situação era rara.
– Sim. Há alguns dias, num posto de gasolina a leste da fronteira.
– Por que não deu conta deles? – Guth lembrou que Sirith era influente. – Soube que comanda uma pequena brigada.
– Uma brigada não é suficiente – explicou. – Há um querubim entre eles, um lutador sanguinário e feroz. Precisamos recrutar uma horda.
– Por isso veio até mim? – Era óbvio. – De quantos necessita?
– De muitos. Todos que puder reunir.
– Fale em números comigo.
– Mil. Quinhentos pelo menos.
– Deve ser coisa grande. – O diabo se arvorou. – O que vai me dar em troca?
– Pode ficar com os dois. Serão seus. – E acrescentou, afagando as rugas do pescoço: – Há um ofanim que talvez lhe agrade.
– Um ofanim? – Bakal acordou do transe. – Capturar ofanins traz má sorte. Sirith mudou o discurso, virou a mesa. Agora que j á os tinha envolvido, bastava convencê-los a aceitar seu acordo.
– Vocês se contentam com pouco – fitou os jovens drogados. – O que estão fazendo é desastroso, uma vergonha para a nossa divisão. – Engrossou a voz. – São demônios, emissários do inferno, não fantasmas ou espíritos devoradores.  Por quanto tempo vão continuar chafurdando neste chiqueiro?
Guth soltou um chiado, mostrou os dentes caninos.
– Que porra é essa? – levantou para enfrentá-lo. – Pensa que me engana, seu bosta? Entra no meu refúgio, pede que eu organize uma horda e me oferece dois anjos. E você? O que ganha com isso?
A resposta estava na ponta da língua.
– Os celestiais aos quais me refiro estão indo ao encontro de uma arconte, uma líder de coro. Meus agentes os estavam espionando – revelou. – Tudo que eu quero é ela. Todo o mais deixo para vocês.
– Oh, por que não disse antes? – O diabo de pele verde sabia que os arcontes eram consagrados em suas castas e, naturalmente, mais valiosos.
– A horda – insistiu. – Quando conseguirá organizá-la?
– A qualquer momento. – Guth abriu os braços, empinou o nariz. – Esses diabretes me seguiriam até por baixo da toga de Lúcifer.
– Ótimo. Farei então uma revista às tropas. Amanhã, neste horário? O infernal nada disse. Era a moça que agora manipulava a seringa, pronta a fincá-la não no braço, mas na j ugular. Guth não resistiu à tentação, esqueceu-se completamente do visitante e engatinhou até o tapete.
– E então? – pressionou Sirith.
– Amanhã – concordou, sem prestar muita atenção. Bateu uma continência torta e pouco sincera. – Agora, se manda daqui – abanou as mãos, como quem espanta um inseto. – Deixe-nos em paz.
Sirith não questionou. Abriu as asas e saiu voando. Despontou no telhado, cruzou os cabos de luz, atravessou uma árvore, viu novamente a cidade de cima. No apartamento, Guth e Bakal se entreolharam. A garota puxou a agulha e caiu no tapete com os lábios espumando. Engasgou, perdeu o fôlego pela sobre dose. O coração parou.
Estava morta.

Filhos do Éden - Herdeiros de AtlântidaOù les histoires vivent. Découvrez maintenant