Prólogo

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Interior do Brasil, dias atuais


Para a maioria dos anjos, o grande problema da terra não é a corrupção humana
ou a degradação social. É o cheiro.
Levih e Urakin se acomodaram na mesa do restaurante, uma espelunca à beira da estrada, nos fundos de um posto de gasolina decadente, de paredes enegrecidas pela poluição dos caminhões e j anelas embaçadas com a gordura das frigideiras. Era noite e o pavilhão estava agitado. Carreteiros, passageiros de ônibus e funcionários de transportadoras comiam e bebiam, naquela que era a última parada rodoviária em quilômetros. O chão, coberto de marcas de óleo, escorregava a cada passo. No ar, o odor de combustível se misturava ao fedor de urina, que escapava intermitentemente do banheiro sem portas. Sob o balcão, sanduíches e salgados eram expostos numa estufa gelada, atraindo insetos ao banquete noturno. Levih, acomodado à direita da mesa, era uma exceção entre os alados. Conhecido como Amigo dos Homens, pertencia à casta dos ofanins, a ordem dos anjos protetores, defensores da espécie mortal. Vagara pelo mundo ajudando em causas humanitárias, dando alimento espiritual aos desesperados, tentando afastá-los da perversão. Seu rosto era jovem, de olhos azuis e dentes  muito brancos, que se destacavam na expressão sorridente. Os cabelos cobriam a testa numa franja grisalha, e os fios cinzentos tornavam difícil saber se tinha 20, 30 ou 40 anos. A barba da mesma cor corria rala em volta do queixo, e a falta de bigode revelava uma constituição  delicada. Vestia calça azul, camisa bege e um paletó verde musgo, de um tecido tão fino que fazia lembrar um jaleco. O corpo magro combinava com a pele clara, o nariz arguto e as bochechas rosadas. Acomodado à sua frente, Urakin, Punho de Deus, não tinha a mesma opinião acerca dos homens. Era um querubim, um anjo guerreiro, e não apreciava toda aquela desordem. Alto e musculoso, de corpo forte e quadrado, era fácil confundi-lo com um lutador peso-pesado, ou mesmo com um caminhoneiro mal-encarado. A expressão robótica assustava, realçando ainda mais a cicatriz no supercílio. O pescoço grosso terminava numa face redonda, de cabelos raspados, orelhas pequenas e cavanhaque curtíssimo. Usava coturnos, camiseta
escura e uma japona marrom, com o capuz cáqui jogado para trás.
Um grupo de motoristas embriagados começou a cantar o hino de um clube esportivo. A chuva parou, silenciando os pingos no teto de fibra. Uma música antiga tocava repetidamente no rádio do bar: "Can't Take my Ey es off You".
– Então, você é o líder da missão? – perguntou Urakin, com os olhos fixos em Levih. Sua voz era áspera e ele falava pausadamente, ainda pouco confortável com a recém-materializada forma física, que os celestes chamavam de avatar.
– É o que parece – Levih respondeu, agradável. Olhou sobre as cabeças, como se procurasse alguém que estava para chegar. – É curioso. Uma formação nada usual.
– Como? – O comentário não fazia sentido.
– Nossas castas. Um baralho de opostos. Já pensou como isso é raro?
– Não fui recrutado para pensar – foi a resposta. – O que estamos esperando?
– O meu sanduíche – mas, ao entender a impaciência do colega, acrescentou:
– Estou calculando qual seria a melhor rota até o nosso destino.
– Você conseguiu um carro. – Através da janela, podia-se ver um velho utilitário estacionado num terreno baldio, quase no meio do mato, a oeste da parada de ônibus.
– Já caminha na Haled faz muito tempo? Levih sorriu e, apesar da aparência adulta, tinha algo de infantil no rosto. Os ofanins são essencialmente bondosos, tão amáveis que muitas vezes beiram a ingenuidade.
– Algum tempo.
Um homem de avental amarelado avisou que o sanduíche saíra da chapa: pão francês com queij o e manteiga. Levih buscou o prato, voltou à mesa e abriu um guia rodoviário, enquanto enfiava um canudo na latinha de refrigerante.
– Não sei como aguenta comer essa porcaria – Urakin parecia enojado.
– A gente se acostuma – Levih retrucou, sem dar muita importância. Indicou com o dedo um ponto no papel. – Já esteve aqui?
– Santa Helena? – Era o nome que constava no mapa. – Nunca ouvi falar.
– Também não. – O ofanim fechou o guia e o arrastou para o canto da mesa.
– Agora, diga-me. Como pode ter acontecido? Dois celestiais, sendo um deles um
arconte, desaparecerem sem deixar vestígios?
– Essa é a nossa missão?
– Resgatá-los. Por isso viemos. – Bebeu um gole do refresco e deu uma mordida generosa no pão com queijo. – Kaira, Centelha Divina, uma ishim mestre na província do fogo, e Zarion, o querubim que a protegia. Sumiram nesta cercania há dois anos, talvez um pouco mais.
– E por que só nos mandaram agora?
– Por que você acha? – Levih inclinou o corpo para frente e sussurrou, como quem partilha um segredo. – Não deveríamos estar aqui. Eles não deveriam ter estado aqui. Temos uma trégua, esqueceu?
– Duvido que Gabriel tenha quebrado o armistício. – Ele confiava em seu comandante. – E o que faremos após encontrá-los?
– Fui orientado a dar prosseguimento à missão original, estejam eles vivos ou mortos.
– E você sabe o que, ou quem, eles estavam perseguindo?
Levih ia responder, mas se calou. Dois homens com farda da polícia militar entraram no salão. Seus uniformes eram azul-marinho e usavam coletes à prova de bala. No cinturão, traziam pistolas de grosso calibre, rádio, cassetete, algemas e munição para as armas. Foram direto para a mesa dos anjos, sem ao menos olhar ao redor.
– Eu cuido disso – avisou o Amigo dos Homens, no momento em que o guarda se aproximou para abordá-lo.
– Boa noite, amigo. – O policial não esperou Levih responder. – O carro lá fora é seu? – e mostrou o automóvel estacionado no pátio.
– É de um colega.
– Eu quis dizer isso. – O segundo policial não desgrudava a atenção de Urakin.
– Vai ter que vir comigo.
– Algum problema?
– Nada grave. Preciso checar os documentos. Só queremos verificar...
– Vamos acabar logo com isso. – O Punho de Deus se levantou. Levih devorou o resto do sanduíche e os seguiu, limpando os dedos em guardanapos de papel barato. Estava confiante em resolver o impasse, afinal a persuasão é uma característica inata da casta. Eles a usam para provocar reações emocionais, converter espíritos malignos e conduzir seres humanos ao caminho da redenção. Urakin continuava em alerta enquanto saíam do restaurante. Os guardas não o assustavam, mas havia algo de estranho na maneira como andavam – ele não sabia dizer o que era. E havia um cheiro desagradável.
Na parte anterior do terreno baldio estava estacionada uma viatura policial, de portas abertas, bloqueando a saída do utilitário. Ao volante os aguardava um oficial graduado, exibindo insígnia de capitão, com a mesma farda de seus companheiros. Enfiada no coldre, sua pistola não era própria da instituição – era uma SIG-Sauer calibre 45 ACP, cromada, com a coronha e o gatilho pretos, um equipamento caro e bastante incomum. Levih calculou que tinha 35 anos, talvez um pouco menos. Mas, apesar de ser um agente da lei, demonstrava expressão de bandido. O corpo era típico dos militares, com os antebraços especialmente largos. Os olhos eram negros e sombrios, delineados por sobrancelhas pretas. Os cabelos, igualmente escuros, estavam parcialmente escondidos sob a boina. Levantou-se imediatamente ao vê-los chegar. Encarou os celestes, examinando-os por vários segundos. Arrostou Urakin num gesto de desafio, para a seguir anunciar, como um juiz que lê a sentença:
– Este carro foi dado como roubado. Estamos atrás do ladrão. Onde estão os
documentos?
Pelo tom, Levih entendeu que a acusação era séria. Os ofanins não aprovam a violência, mas ele sabia exatamente o que fazer.
– Capitão, eu e o meu amigo estamos muito cansados – argumentou. – E temos pressa. Estou certo de que entende isso. Agora, por que não esquece este mal-entendido e tira a viatura de nosso caminho? Seria de imensa ajuda, e ficaríamos eternamente agradecidos.
Normalmente, Levih não teria problemas em persuadir qualquer homem mortal, mas o agente estava irredutível. Franziu a testa e pousou a mão sobre a coronha.
– Também temos pressa, companheiro. Com um instante de diferença, Urakin previu o ataque. Escutou quando os dois policiais mais atrás sacaram suas armas e decidiu reagir, como faria
qualquer bom soldado. Estendeu a mão e tocou a maçaneta do utilitário, muito próximo a ele. Puxou a porta com violência e as dobradiças se partiram, rasgando o metal num trovejo. No mesmo impulso, transformou a peça em porrete, golpeando um dos oficiais bem na testa. Antes que o primeiro deles pudesse disparar, a espinha se quebrou com o choque – o corpo desabou inerte, esparramado ao lado de um arbusto, quando o outro guarda puxou o gatilho.
Levih estava paralisado, impressionado demais para reagir. O código de sua casta o impedia de ferir qualquer criatura, especialmente seres humanos, mesmo em defesa própria.
Urakin ouviu um estalo e sentiu duas balas lhe atravessarem a carne – uma entrou pelo ombro e a segunda trespassou o estômago, felizmente longe do coração. Vigoroso, lançou-se à batalha e, como um urso, agarrou o atirador pelas têmporas, suspendendo-o com ambas as mãos. O capitão não estava alheio ao combate, mas preferiu recuar, para só então puxar a pistola. Por sorte, a espoleta falhou, e, ao ver o estrago que o querubim provocara, ele saiu correndo, tomando distância dos anjos.
– Vá pegá-lo! – gritou o Punho de Deus, mas Levih se recusou.
– Pare com isto. É uma ordem! – Ele não tolerava assassinatos.
– Ainda acha que... – Urakin esmigalhou o pescoço – eles são humanos? – Quando a vítima morreu, ele a largou sobre o solo para, num movimento automático, remover-lhe o coração.
Reparando mais atentamente, os dois cadáveres eram distintos dos defuntos comuns. Os corpos começaram a murchar, como se os órgãos, o sangue e até os ossos estivessem secando. Restou, dali a poucos segundos, uma mancha de excrementos, borbulhando dentro de uma casca enegrecida, que foi diminuindo até esfriar.
– Raptores – murmurou o Amigo dos Homens. – Como nos acharam?
– É o trabalho deles – raciocinou o Punho de Deus.
– Como soube? Urakin caminhou até a parte posterior da viatura, ainda com as luzes de alerta
piscando. Abriu o porta-malas, rompendo a tranca com sua força sobre-humana. Três homens jaziam mortos, amontoados no bagageiro. Suas fardas e sua aparência eram as mesmas das entidades que os haviam agredido.
– Senti cheiro de carne podre.
Levih deu uma boa olhada nos policiais falecidos.
– Que diabrura! Eles copiam perfeitamente a forma humana.
– Qualquer forma – Urakin corrigiu. – Já enfrentei alguns deles antes – fechou o porta-malas. Sua natureza guerreira clamava por mais ação. – Vamos ficar parados? O chefe deles ainda pode estar ao nosso alcance.
– Melhor deixarmos que ele fuja – decidiu o ofanim. Era o líder, por enquanto. – Esse incidente não tem nada a ver com a nossa missão. Os raptores andam por aí a caçar anjos perdidos. Uma lástima que nos tenham localizado. Mas não podemos deixar que contratempos assim nos atrasem.
– Como preferir. – Os querubins são práticos em seus objetivos e perfeitamente leais.
Urakin respirou fundo e só então notou quanto sagrava. Os tiros não o matariam, mas o haviam deixado exausto – ele precisava se alimentar.
– Sabe aquele sanduíche nojento? – continuou o guerreiro, apoiando a mão no ombro do pequeno Levih. – Acho que vou aceitar.


Filhos do Éden - Herdeiros de AtlântidaWhere stories live. Discover now