Amy sabia qual reação receberia da amiga. Então, apesar de sua vontade de acabar com aquilo de uma vez, seus movimentos tornam-se calmos. Se ela não ajudasse Julie, ninguém mais o faria. Segurando o Diário da Dor com as duas mãos, se pergunta como uma coisa tão aparentemente inofensiva pudesse ser algo tão ruim para alguém. Entretanto as duas estavam cientes de que uma promessa tinha sido feita. E, ali, naquele apartamento, com as janelas abertas para que a brisa leve pudesse agraciá-las sempre que quisesse, era o momento de cumpri-la.

Porque, às vezes, a dor é o primeiro passo para a cura.

Com este pensamento em sua cabeça, ela sai do quarto em passos leves, evitando movimentos bruscos. Julie está sentada da mesma forma que antes, pernas cruzadas e um pacote de Cheetos no colo, mas sua expressão é terror puro. Amy sente que aquele diário desgraçado de repente pesa uma tonelada, e cambaleia um pouco ao andar até a outra mulher. Respira fundo algumas vezes. Precisa manter a calma, precisa estar ali como o porto seguro da amiga, e precisa ser firme também.

- Ju. – diz com a voz mais serena que pode.

Alguns segundos excruciantes se passam. Sem resposta. Então se aproxima da outra e senta ao seu lado. Nenhuma reação. Julie nem ao menos pisca, as lágrimas que se aglomeravam agora caem sem restrição. Amy coloca o diário no chão, e, sabendo que era o necessário a se fazer, coloca os braços em volta de Julie, sua cabeça repousando no ombro de sua colega de quarto.

Continuam assim por um tempo, apenas respirando, ignorando o mundo lá fora e a televisão lá dentro. Ignorando o vento entrando pela janela, as cortinas dançando no ar, o som de motores e buzinas que afirmavam que tudo estava normal no mundo. O ano que começa, a vida que segue, business as usual.

- Você vai dizer que a dor merece ser sentida de novo? – Julie sussurra quase inaudível.

Amy levanta a cabeça e observa os olhos vermelhos da morena. Ainda perdidos, mas com foco, e as lágrimas não mais caem.

- Não. Mas vou dizer que você precisa manter a promessa. Eu sei que é difícil, eu sei, de verdade. Eu quero você feliz de novo, Ju, mas não acho que assistir filmes com homens bonitos seja a resposta pra sua melhora.

Julie bufa.

- Não sei porquê você gosta de me ofender achando que eu só vejo a beleza exterior. – retruca, a voz tomando vida de novo.

- Então pode tirar a foto do Idris Elba sem camisa do box do banheiro?

- Você não vai gostar de me ver brava, Amelia.

Amy se deixa suspirar com alívio ao ouvir o tom zombeteiro da resposta, seus braços ainda firmes e fortes em sua missão de acalmar. Retornam ao silêncio por algum tempo, olhando para a televisão sem realmente ver, ouvindo a música sem escutar.

- Eu não queria começar o ano fracassando promessas que fiz comigo mesma, mas só de pensar em reviver aquele inferno de novo eu prefiro viver em negação. – Julie entoa. Seu corpo relaxa um pouco, e ela sente a ansiedade que domina seu estômago abrandar. A apreensão em seu tom é óbvia, porém se força a continuar. – Eu sei que preciso mudar e fazer as coisas diferentes, só que... sei lá. É difícil.

- Eu sei.

Julie fecha os olhos por um segundo, respirando fundo. Vira o rosto para encarar Amy, e não encontra nada além de carinho e apoio naquelas íris verdes. Naquele momento, ela sabe o que precisa fazer. Dá um abraço rápido na amiga e, desajeitada com os braços da moça que ainda a envolvem, se esforça para pegar o diário da desgraça que repousa calmamente no chão.

Amy ri com a ação desengonçada. Dá um beliscão leve na bochecha de Julie e as duas se ajeitam com as costas no sofá, prontas para a conclusão de um projeto que precisava de desfecho.

Julie encara o diário. Aquela capa emborrachada branca que buscava emanar plenitude e boas vibes com suas mensagens de motivação, aquele elástico que mantinha um ano inteiro e todos os seus piores momentos seguros. Aquela promessa idiota que fez a si mesma 365 dias atrás. Todos os seus medos e receios, os poucos momentos de alegria, os vários momentos em que se sentiu uma perfeita fracassada, as horas que passava chorando nos braços de Amy e os minutos que se repreendia por fazer a vida de sua amiga tão mais difícil. Tudo escrito ali, todos os dias relatados com suas belezas e desgraças, mais desgraças que belezas, o retrato de uma pessoa tentando viver a vida direito e suas falhas e acertos.

- Talvez não seja tudo ruim, sab-

- Ok, regras. – corta Julie. – Eu não vou ler tudo de novo. Não quero, não preciso. A promessa era que no primeiro dia do ano seguinte eu descobriria nesse diário o que precisava mudar na minha vida para melhor. Nada nela disse que eu precisava enfrentar esse rio de bosta outra vez, portanto vou ler o que vai realmente me ajudar.

- Os resumos da semana. – Amy entende. Julie não precisaria se fazer passar por seus perrengues do passado outra vez, só precisava ler os arquivos dos domingos, o dia em que sentava para refletir sobre os últimos sete dias e o que deu certo ou errado neles. – Ótima ideia.

- Eu sei, não sou masoquista. – Julie rola os olhos, enfim determinada a resolver a situação. Talvez ela realmente precisasse enfrentar seus medos, e aquele diário era a exata definição de "medo" no momento.

Talvez ao ler as coisas que escreveu há um ano, ela conseguiria tornar 2018 bom. Talvez assim compreendesse seus erros e teria o empurrão que precisava para torná-los acertos. Talvez conseguisse chegar em 2019 sem precisar refletir sobre tudo em que fracassou mais uma vez.

Julie sabe o que fazer. Está cansada de se sentir terrível a todo instante, e cansada de fazer Amy sofrer ao vê-la daquela forma. Cansada de chorar, cansada de reclamar e cansada de emanar tanta negatividade.

Julie aceita que não pode ignorar seus sentimentos para sempre.

- Da próxima vez que eu prometer passar o primeiro dia do ano lembrando o quão porcaria o ano passado foi, faça o favor de me estapear. – brinca. E, com um sorriso debochado, conclui: - E, só pra informar, depois disso não aceito fazer qualquer coisa pelo resto do dia que não seja assistir gente bonita cantando e encher minha cara de coisas que vou me arrepender de ter comido amanhã.

Amy ri. Assentindo, pega o controle da TV e percebe que Butterfly do BTS é o vídeo da vez, o som etéreo e calmo da música preenchendo a sala do apartamento. Era o momento perfeito.

Like a butterfly...

Sentindo os olhos da ruiva observando-a, Julie abre o diário. Sentindo uma mistura de receio e determinação, ignora por completo as páginas que não a ajudariam, pulando logo para o primeiro domingo do ano. 1º de janeiro.


Esse ano prometo que vou escrever todos os dias aqui. 2016 foi bem ruim e difícil, mas eu não sei o que fiz de errado ou como isso aconteceu. Então talvez se anotar tudo eu vá entender. Não sei. E daqui a um ano vou ler o que rolou e vou tomar vergonha na cara e ter uma ótima vida. Ou talvez nem vá precisar. Sei lá. Vai que 2017 acaba sendo incrível.

Se a Julie de 2018 está lendo isso... bem, se ela não estiver isso é um problema, né? Cumpra as promessas, Julie. E tenha um ano bom. Aprenda consigo mesma. E pare de entristecer a Amy. Será que já confirmaram uma sequência pra Agente da U.N.C.L.E. até aí?

Putz. Agora quero assistir Agente da U.N.C.L.E. Será que se eu assistir o filme todo dia do ano tudo vai ficar maravilhoso?


Julie ri. Dentro de seu coração sente que as coisas serão diferentes esse ano. Não sabe ainda como, ou o que vai fazer. Mas sabe que, por si mesma e pela Julie de 2017, ela precisa tentar mudar sua situação.

Com a fagulha de esperança que se acendia em seu peito, torna o olhar para Amy e, sorrindo, diz:

- Ano novo, vida nova, certo?



Texto produzido a partir do projeto Na Ponta da Caneta, do site Who's Thanny? O tema de janeiro foi recomeço.


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