Marie foi até a minha janela com um semblante rígido, que eu não conseguia identificar o motivo, enquanto encarava a floresta. A paranoia daquele lugar estava indo longo demais.

― Não vai sair com os seus amigos hoje? ― Ela perguntou, enquanto fechava a janela com força. Eu ignorei aquela intromissão.

― Não, tenho dever de casa. ― Menti. Eu nunca menti muito bem, mas Wells estava aperfeiçoando a minha habilidade em mentir. No geral, eu mentia o tempo todo. Sobre como a minha vida estava se ajustando, sobre como eu estava alegre por voltar ao colégio e conhecer a Inglaterra, quando na verdade eu não sentia nada disso.

― Pode ser bom para você, entende? Por conta do luto...

Algo dentro de mim quis gritar. Depois de dias sem emitir nenhuma palavra sobre a morte dos meus pais e quase ignorar a minha existência, com exceção das refeições, eu não entendia de onde vinha aquela falsa compaixão de Marie.

― Bom para mim ou para você? ― Deixei escapar baixinho. Marie arregalou os olhos, não esperava a minha audácia. ― Você parece doida para se livrar de mim. ― Comentei em tom despreocupado.

― Eu não tenho muitas experiências com adolescentes, Roslyn. O seu pai foi jovem numa época em que tudo era mais fácil e, bom, eu tinha o seu avô para me ajudar. ― Era a primeira vez que ela o mencionava e eu me dei conta de que não sabia nada sobre o pai do meu pai. ― Mas não precisa muito para saber que uma menina da sua idade precisa sair e se divertir.

― Não uma garota que acabou de perder os pais. ― Falei, encarando as rachaduras do chão de madeira. Aquilo não era uma mentira, eu simplesmente não estava pronta para seguir em frente ainda, não quando... afastei a imagem dos corpos submersos em água dos meus pais para longe.

― A sua mãe ia querer isso, que você superasse. ― Ela disse, visivelmente desconfortável. ― Eu sei que para você é como se fosse ontem, mas já faz três meses.

― O que você sabe sobre isso, Marie? Eu não sabia da sua existência há dias. Você não sabe nada sobre a minha mãe ou sobre mim. Nós estávamos muito bem sem você aparecer.

Nós. A minha família e eu. A palavra queimou na minha garganta assim que a proferi, não havia mais nós quando se tratava de mim. Era apenas eu e minha dor. A minha família havia partido e eu fora deixada para trás. Para seguir com a porcaria da minha vida.

Eu ignorei Marie e os seus parcos esforços de dizer alguma coisa, fui até o cabide e peguei um dos casacos que comprei na Loja de Jane. Toquei pela primeira vez a raiva que crescia e germinava por baixo da minha apatia. Só era preciso uma fagulha para que eu explodisse e, bom, Marie tinha começado o incêndio.

A minha adorável avó, por outro lado, apenas assentiu e perdoou a minha rebeldia momentânea, transformando a minha raiva em ressentimento. Não suportava mais aquela frieza.

― Aonde você vai? ― Ela perguntou.

― Sair. ― Respondi com raiva. ― Não era isso o que você queria?

Não havia lugar nenhum para ir. Nenhum lugar para me esconder, já que mesmo não me conhecendo pessoalmente, boa parte das pessoas em Wells sabiam quem eu era. A minha vontade era apenas desaparecer. Depois de caminhar sem rumo por ruas iguais, as minhas pernas me levaram para a loja de Jane. A garota era de longe a mais normal de todas as pessoas recentes que eu havia conhecido.

Assim que cheguei na fachada da loja e me dei cara com o aviso na porta, não me contive e xinguei bem alto. Do outro lado da rua uma mulher com um carrinho de bebê me olha feio. Por um momento me esqueci de onde estava, na cidade pequena e mais hipócrita que conhecia e não tive dúvidas de que a mulher chegaria em casa e telefonaria para deus e o mundo, até que chegasse à Marie.

A Corte de Sangue - EquinócioOnde as histórias ganham vida. Descobre agora