A MELANCOLIA É TURQUESA [parte 1]

393 25 14
                                    


Kantera, de tão esquecida pelo resto da civilização, era uma cidade em que tudo parecia calcificado pelo tempo, os ponteiros despejando ferrugem e pó a cada passagem no relógio. Depois que os poços secaram e as colheitas acinzentaram, muitos fugiram e pouco restou. Em suas ruelas, os ventos perambulavam desordenados, bêbados, em direções várias e incertas. Kantera só sabia ventar e não-ser; habitantes que haviam suprimido sua origem, linhagem, seu gosto pelo passado, sua expectativa pelo futuro. Porém, ruínas não havia: tudo permanecia tal como sempre fora, sem novidades e melhorias, apenas uma versão ultrapassada - amanhecida, diriam - da ideia primeira que incitou os desenhistas da cidade. Papel carbono meio amassado, todo desbotado. Kantera era um ponto no mapa que esqueceu de se apagar.


Nos limites da cidadela, fazendo fronteira com a mata que nunca teve nome, estava lá uma casinha de madeira precária e recém atacada por cupins. Prestes a desmantelar. O drama do casebre era ter uma fundação inapropriada para a quantidade de cacarecos que foram sendo pendurados nas paredes e telhado, forçando vigas e ripas. Por exemplo: Érico, seu único morador, gostava de redes. Havia uma em cada cômodo - à exceção do banheiro, mas incluindo a cozinha. O que se podia fazer? Balançava porque isso lhe dava uma sensação boa de passagem temporal, quando nada mais em Kantera o fazia. Contava os segundos a cada vai-e-vem do tecido, os minutos pela quantidade de vezes que as garras de fixação rangiam.


"Um dia vai vir, vai vendo... Dia em que balançar na rede trará o teto ao chão, rachando sua cabeça, Rico", disse o vizinho Milo, pouco antes de trocar a casa em que vivia, ao lado da de Érico, por treze cabeças de gado, carruagem de pangaré com banco afofado e uma promessa não cumprida. O novo morador, forasteiro taciturno, pouco ficou, pois foi acometido de melancolia crônica por passar os dias fitando a mata fechada e tentando cultivar melões no enegrecido solo. Os outros vizinhos, em sua maioria criadores de cavalos e artesões, moravam a consideráveis léguas de distância, de tal modo que Érico ficara sozinho no limiar norte da cidade. Infortúnio? Não, pelo contrário; isso muito lhe aprazia. Gostava mais de silêncio e bicho que de gente.

A falta de convívio social permitia a Érico alguns luxos - isso se a palavra "luxo" encaixar-se em algum lugar na vida de tão rústico homem. É que ele não precisava fazer a barba com frequência, aparar os pelos de acordo com o socialmente aceitável e/ou desejável. Há muito que sua barba passara em comprimento, para baixo, o que seu cabelo crescera para cima. Castanho, revolto e levemente ondulado nas extremidades, cortava ele próprio o cabelo com uma tesoura imprópria para a tarefa, usando o espelho trincado do banheiro como fiel auxiliar. O resultado estava longe de uma obra de barbearia, mas a precariedade do corte combinava com suas feições marcadas, vincadas, como se talhadas em madeira nobre.

Roçando os quarenta anos e com um físico burilado por cavalgadas, cortes de lenha e outros serviços braçais, Érico despertava a atenção das mulheres, novas e velhas, nas poucas vezes em que precisava ir à cidade. Não que isso significasse mais agitação em suas redes: o homem não tinha consciência de sua atratividade e baixava a cabeça para cada olhar de desejo, pois se encabulava ao pensar que tal escrutínio fosse motivado por algo de vexaminoso em sua aparência. Camisa amarrotada ou comida presa à barba, sabe-se lá.

Apesar da reclusão autoimposta, as idas ao centro, cada vez mais esporádicas à medida que o outono chegava ao fim, eram necessárias para as vendas. Pagando uma taxa municipal, Érico adquirira o direito de montar uma barraca na principal praça da cidade - a Praça do Entulho. Em seu miolo, fazia anos que a igreja já não atraia fiéis, que a fonte com querubins fora desativada, que os gramados tinham mais ervas daninhas que papoulas; mas o comércio e, principalmente, o escambo seguiam intensos, sangue a pulsar pelas veias e artérias de Kantera. Espremido entre uma venda de peixes de água doce e uma loja de flores silvestres, Érico erguia sua modesta banquinha - em que vendia tudo que podia atrair algumas moedas, trocava tudo que fosse digno de permuta. Peles e carne de animais recém-caçados, objetos úteis e decorativos feitos com madeira recém-cortada, morangos e pêssegos mirrados, sobreviventes de uma terra que amaldiçoava suas sementes. E assim seguia Érico, vivendo de miudezas e fugindo de fantasmas do passado.

You've reached the end of published parts.

⏰ Last updated: Feb 10, 2018 ⏰

Add this story to your Library to get notified about new parts!

A Cor Que Não Se Vê (Fantasia gay)Where stories live. Discover now