Capítulo X - Criaturas Noturnas

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Tirei os óculos, deixando suas lentes empoeiradas para trás. Vislumbres de garoas desabando em cidades elétricas, narizes sangrando e incêndios preencheram o anfiteatro de minhas pálpebras, e apesar de estar completamente imóvel em minha cama, era como se eu estivesse sendo puxado para várias direções ao mesmo tempo, a ponto de me ver rompido. Dois dias atrás, a minha maior preocupação era terminar o ano letivo sem quaisquer pendências para que eu pudesse conseguir um emprego e, dessa forma, ajudar minha mãe com as coisas de casa. Uma reforma aqui e ali; nada tão majestoso, mas apenas o suficiente para tornar esse refúgio minimamente aconchegante. Agora, eu me via repensando sobre a vida de uma das pessoas mais próximas de mim, que aparentemente não passou de uma grande mentira sustentada por uma conspiração mais antiga que todos nós. É impossível imaginar o quão difícil deve ser ter que desenterrar algo que ficou para trás mais ou menos uma década atrás. Tirar as memórias do âmbar e colocá-las em movimento mais uma vez. Ao que parece, passados trágicos tinham a chance de proporcionarem uma vida cheia de reviravoltas e revelações. Mas será que isso acontecia com todas as pessoas? Me fiz essa pergunta algumas vezes, e tinha minhas dúvidas.

Ainda estava esperando por alguma mudança.

Não havia sequer uma faixa de luz além da fresta embaixo da porta. Meu quarto estava iluminado parcialmente por um abajur estrategicamente posicionado em uma prateleira da estante dos livros. Eles, em sua maioria, eram histórias fantásticas, parte de uma coleção de uma autora chamada Tiffany Winston. Eu já havia passado noites em claro com aqueles contos, mesmo não lembrando da maior parte de seu conteúdo, principalmente pelo fato de tê-los consumido quando ainda era criança. Desde então, fazia bastante tempo desde que eu li algum volume por inteiro. Para falar a verdade, se alguém me perguntasse agora mesmo sobre aqueles livros, eu não saberia dizer ao certo sobre o que se tratavam. Talvez as experiências de leitura não tenham sido tão marcantes assim, por mais que eu me lembre do tempo em que aqueles livros me fizeram companhia na época em que ainda não tinha nenhum amigo próximo.

Uma das paixões de Trisha era literatura épica de civilizações antigas. Histórias de guerreiros que carregavam fardos mais pesados que montanhas. Suas obras favoritas iam desde o Épico de Gilgamesh até a Edda em prosa e o trabalho de Homero. Tal admiração por esses mitos foi nutrida principalmente por meu pai, um fanático pela cultura mediterrânea. Depois que ele se foi, minha mãe quis honrar seu nome, e foi por meio dos livros e poemas que o legado de Jefferson Matthews foi perpetuado. Eu podia capturar uma fotografia estática do homem que eu nunca conheci cada vez que folheava a coleção particular de minha mãe e via partes dele compostas por um mosaico cujas peças eram encontradas nas páginas e paisagens descritas por aquelas obras. Jefferson mostrava-se em mares límpidos de arquipélagos iônicos ainda não explorados e nos campos inalcançáveis de uma Mesopotâmia que não existia mais. 

A razão para eu não conhecer meu pai biológico é simples. O acidente marítimo que tirou sua vida ocorreu enquanto minha mãe ainda estava grávida. Se eu perguntava sobre ele quando criança, eu não me lembrava. É provável que tenha feito questionamentos básicos, uma vez que eu não devia ter demorado para perceber que algumas das crianças voltavam para casa com o pai depois que nossas aulas acabavam. Contudo, essa singela peculiaridade sobre a minha existência foi uma das inúmeras coisas com as quais aprendi a conviver. A verdade é que não fazia diferença para mim; pelo menos não uma diferença real. Eu não sabia quem ele era, mas minha mãe sim. Se o preço de descobrir mais sobre ele fosse abrir as feridas de Trisha, significava que o esforço simplesmente não valia a pena. Para mim, Jefferson Lee Matthews era um historiador de sucesso e um marido carinhoso que, assim como minha mãe, era munido de um passaporte possuidor de vários carimbos. Eu tentava não pensar muito sobre isso, mas era óbvio que a paixão por viajar que Trisha compartilhava com meu pai morreu junto com ele. Afinal, que graça teria conhecer o mundo se ela estava fadada a fazer isso sozinha? Ela comentara em algumas ocasiões sobre as viagens que Jefferson fazia por lugares históricos da Europa, desde a península Itálica até os jardins de tulipas de Amsterdam. Entretanto, a Grécia sempre foi seu destino favorito, principalmente a costa oeste. De acordo com ela, meu pai era fascinado pelas ilhas de Kefalonia e Zakynthos. Eu não tinha certeza, mas acredito que durante seus estudos na universidade, ele escreveu uma tese sobre a ocupação desses territórios. 

Luas de Diamante (Volume 1) [EM REVISÃO]Where stories live. Discover now