Ele

104 8 1
                                    

Mesmo depois de tomar meu remédio para dormir eu não consegui dormir, não conseguia tirar Samanta da minha cabeça, toda vez me vinha a imagem dela chorando... Eu ia dar um jeito nisso, não iria perder essa amizade incrível! Amanhã iria falar com ela, direi o que estou sentindo, sei que ela é sensata e gosta de sinceridade... Como queria ser normal para poder ter um sentimento recíproco pela Sam, uma vez eu já passei horas pensando na pessoa maravilhosa que a brócolis é, não teria problema nenhum em ter uma relação com ela, mas eu não posso, eu sei que eu estragaria tudo. Tento pensar em outra coisa, lembro que minha mãe marcou uma consulta urgente com o Dr. Vilela, só que eu não quero conversar com esse cara de jeito nenhum. Qualquer neurotipico não sabe o que realmente se passa na cabeça de um aspie, não somos iguais, cada um tem um diagnóstico, todo mundo que é mal informado acha que todo autista é "retardado", alguns até nos confunde com alguém que tem síndrome de Dow, eu estou muito cansado de ser tratado como uma criança com necessidades especiais, eu já tenho 17 anos e cheguei até o 3° ano do ensino médio sem ser reprovado uma única vez, aí o que acontece é que eu tenho consulta com um cara "normal", que não sabe como eu me sinto e diz saber sim o que acontece na minha cabeça. Fiquei muito frustado agora. Eu me levanto e vou até meu banheiro, tomo mais um remédio para dormir, sei que não deveria mas não vou conseguir dormir sozinho. Deito na cama e uso uma velha técnica que eu usava quando tinha 7 anos, eu forço meu cérebro a imaginar o sonho que eu quero ter, começo inventando uma histórinha e quando vou ver já estou dormindo e sonhando com algo totalmente diferente, por exemplo, se eu estiver imaginando que estou dirigindo um carro logo depois já vou começar a sonhar que estou andando com uma vassoura na mão... Imagino que estou andando nu dentro de um shopping e todos olham para mim e me cumprimentam... Agora estou subindo uma colina, quando chego no topo dela eu avisto um arco-iris lindo e brilhante, ouço alguém gritando meu nome quando me viro vejo Sam parada no começo da colina, faço sinal para ela vir até onde estou para ver o lindo arco-iris, mas ela se vira e vai embora correndo, tento ir atrás dela mas minhas pernas parecem estar coladas na terra, ouço um barulho e vejo que o chão está cedendo onde eu estou preso, tudo começa a desmoronar e eu começo a cair numa queda infinita... Acordo ofegando e não consigo mais dormir, já são 6:45h, levanto meio grogre dos remédios e vou até o banheiro. Passo 2 minutos me olhando no espelho, tentando decifrar o significado desse sonho. Escuto uma batida na porta e isso me desperta.
Oliver? Está tudo bem meu filho? - É meu pai, minha mãe já deve ter saído para trabalhar
Hm... Tá sim pai.
— Eh... Se quiser conversar, sabe, sobre qualquer coisa, hm... Se quiser conversar eu vou estar aqui para te ouvir, tudo bem? - Meu pai não era muito bom com palavras, mas se tinha uma coisa que ele sabia fazer bem era dirigir.
Tudo bem pai, obrigado.
Eu não tinha um laço muito profundo com meu pai, o Dr. Vilela diz que eu deveria me esforçar mais em relação ao meu pai, eu não faço por mal, meu pai é amoroso porém é reservado assim como eu. Eu sei que ele me ama muito porque veio até aqui perguntar se eu estava bem e se queria conversar. Ele nunca fez isso. Abro a porta e vejo que ele está indo em direção a sala de estar, vou atrás dele e o chamo, dou um abraço bem apertado nele e ele fica sem reação.
Nenhum de nós dois falamos nada, porém não precisava eu sabia que por dentro ele tinha me dito um "eu te amo". Me afastei dele e ele bagunçou meu cabelo igual fazia quando eu era criança, sorri com a lembrança, eu realmente amava meu pai.
*
Depois do café meu pai veio me chamar para irmos, eu tinha a primeira consulta do dia com o Dr. Vilela, durante o trajeto meu pai não fez nenhuma pergunta e eu o agradeci mentalmente. Já no consultório eu estava aguardando ser chamado, depois de uns 10 minutos o Dr. Vilela me chama para entrar. Eu detesto esse cara!
Bom dia Oliver, como está se sentindo?
— Bem?
Tem certeza? Sua mãe marcou a primeira consulta do dia... mas então, vamos fazer algo diferente hoje, se você estiver disposto é claro.
— O que?
Que tal irmos conversar na biblioteca no centro da cidade? Talvez o ambiente te deixe mais a vontade.
— Hm... Tudo bem.
Foi a primeira vez que ele sugere algo do tipo, fiquei impressionado, talvez o ambiente "consultório" realmente me deixe sufocado para falar as coisas com ele. Fomos até a biblioteca e encontramos um canto bem calmo e nos sentamos.
Podemos falar sobre o que quiser, podemos falar até sobre se a zebra é branca com listras pretas ou pretas com listras brancas. - Ri com sua brincadeira, senti que agora poderia conversar de verdade com ele, então foi isso que eu fiz, contei tudo o que estava acumulando dentro de mim por muito tempo.
Perdemos a hora, acabamos ficando 2 horas conversando mas parecia que o Dr. Vilela não estava preocupado, ele realmente estava focado em nossa conversa.
Bom Oliver, não tem nada melhor do que viver um dia após o outro, positivamente. Você não pode controlar o futuro, mas pode controlar o dia de hoje e o agora, faça o que o seu coração manda e não o que as pessoas falam. Se sua amiga não quiser te ter como amigo novamente, peça para ela que pelo menos te perdoe e que não leve nenhuma mágoa para o futuro. Bom, acho que conversamos bastante hoje, muito obrigado por conversar comigo, te vejo semana que vem, até mais. - Dito isso ele pega sua pasta e vai embora.
O Dr. Vilela não é tão detestável assim afinal de contas. Depois que ele vai embora mando uma mensagem para minha mãe avisando que estou na biblioteca e que vou ficar por aqui mesmo. Vou para o segundo andar e me perco nas prateleiras de livros de ficção científica. Eu gosto muito de livros com histórias surreais, mas eu não consigo me ver em nenhum desses personagens, ele são tão "normais"...  Por que só encontro livros com pessoas normais? Por que a maioria dos protagonistas são brancos, loiros e bonitos? Por que sempre a mocinha está em perigo e o mocinho tem que carregar a espada? Por que é sempre menina com menino ou menino com menina? São tantas questões que talvez ninguém pense, eu me sinto excluído de uma forma literária, não só eu, mas muitas outras pessoas deve se sentir assim... Eu vou escrever um super livro dando espaço para todas as pessoas que também se sentem excluídas assim como eu!
O tempo voa quando fazemos algo que amamos, quando fui ver já era mais de 1 hora da tarde, resolvo ir para casa. Passo a tarde toda pensando sobre a conversa que tive com o Dr. Vilela, estou decidido, amanhã vou recomeçar, amanhã serei um novo EU!

Seu amor diferente Onde as histórias ganham vida. Descobre agora