Capítulo 13: Para Bergola

99 22 158
                                    

Por: Tatiana Castro

" (...)E na vida a gente tem que entender

Que um nasce pra sofrer enquanto o outro ri

Mas quem sofre sempre tem que procurar

Pelo menos vir achar razão para viver

Ver na vida algum motivo pra sonhar

Ter um sonho todo azul

Azul da cor do mar".

(Tim Maia, 1970. in: Azul da Cor do Mar)

Kira (Elizabeth Hope Montgomery) Krovopuskov

O mundo poderia acabar e nem me daria conta. Mesmo se a Basílica na extremidade da Praça Vermelha, num piscar de olhos, desistisse de sustentar a maior parte dos destroços retorcidos da fuselagem do avião, eu não desviaria minha atenção daquele olhar mesmerizante de um azul profundo. Estou surda aos lamentos da multidão a minha volta, repetindo, ininterruptamente, em minha mente suas palavras:

"Está preparada para nossa aventura, Golubushka?" – Uma sentença tão familiar que tem o poder de me transportar para as lembranças dos meus doze anos. Aquela garotinha inocente que eu fui sobre a London Bridget não entendia a magnitude camuflada na fala do próprio pai, contudo, receio que a mulher que me tornei só vislumbrou uma ínfima porcentagem das verdadeiras intenções de Dmitri.

Minha visão sobrenatural não modificou a figura de meu pai, que permanece altiva e distinta. Fantasiei inúmeras vezes com esse reencontro, mas minha imaginação não era fértil o bastante para inventar esse cenário inóspito em plena Moscou. Muito menos enquanto eu sou amparada por um demônio charmoso, sedento pela minha alma, e Dmitri em companhia de um brutamonte loiro.

Antes que sua voz abandone minha mente, me desvencilho do demônio e me atiro nos braços de meu pai, esquecendo minha educação forjada nos rígidos internatos ingleses. O alívio por encontrá-lo, após perder as esperanças, mistura-se ao desejo de apagar todos os horrores que nos separaram por tanto tempo.

— Acredito que perdeu seu colar na época errada – Dmitri me entrega o colar com o fecho arrebentado, mantendo-me enlaçada em seu abraço, como se eu pudesse escapulir do seu alcance.

— Temi nunca mais ter outra flor-de-lis – confesso, inspecionando as avarias no pingente. Apesar de alguns arranhões na joia, havia resistido bravamente. O mesmo digo de Dmitri que, obviamente, por sua aparência impecável, não esteve nem no Kremlin e muito menos na queda da aeronave. Já seu acompanhante, com sua desgrenhada cabeleira loira escondendo uma beleza rústica, pode muito bem ter saído diretamente de um desastre... ou podia muito bem estar ferido pelo zunido que emitia.

Não pode ser... mas era um rosnado? Sim! O brutamonte encara Ignestans e rosna ferozmente para qualquer um escutar. O que meu pai faz com um lobisomem a tira colo?

— Controle-se Wolfgang. Temos muitas pessoas por perto para iniciar uma briga – meu pai apazigua, soltando-me e posicionando-se entre o loiro e o demônio para evitar uma contenda.

— Parece que a praça está superlotada – Ignestans, num ato de afronta, se aproxima e beija minha mão – Até breve, Chapeuzinho.

O demônio não espera resposta, ziguezagueando por entre a multidão até o perdermos de vista. Só então o lobisomem cessa o rosnado, mas mantém o olhar feroz de um azul intenso, como a tonalidade anil do céu.

Merda, merda, merda! A penumbra está se dissipando rapidamente e o violeta já tinge o horizonte, agregando uma tonalidade anil ao firmamento de Moscou. Nunca, desde que sofri a transformação, fiquei exposta tão perto do amanhecer.

A Fortaleza VermelhaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora