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Era um dia calmo de verão. Mariana sabia que era verão pelo sol quente e brisa morna, e também porque em nenhuma outra estação ela teria tempo livre para algo tão banal quanto andar no parque.

Andou despreocupadamente, os olhos em Milena. A menina pulava, alegre de um brinquedo para o outro no playground. Divertiu-se no gira-gira e subiu e desceu incontáveis vezes no escorregador. Mariana pensou em ralhar com ela para que desse a vez às outras crianças, mas apesar de o parque estar apinhado, ninguém pareceu se incomodar.

Então veio aquela sensação estranha, aquele incômodo no fundo de sua mente. Não estavam seguras. Algo estava vindo. Tão logo reconheceu os pensamentos, eles a dominaram como fogo em palha. O dia, de repente, já não parecia mais tão claro, e o parque, não mais uma diversão inocente.

Elas precisavam sair dali imediatamente.

— Milena! — gritou, correndo até a irmãzinha. Estivera a poucos metros do escorregador, mas de repente, a distância parecia haver triplicado. Ela correu como nunca, mas cada vez que chegava perto, o brinquedo parecia pular para trás, distanciando-se dela — Milena, saia daí!

A menina não pareceu ouvi-la, entretida como estava em subir e descer do escorregador. Ria com a despreocupação de uma criança da sua idade, com a inocência de quem não reconhecia os perigos que estava à solta por aí. Mariana chamou de novo seu nome, e olhou para trás.

Uma enorme sombra tomava céu e terra, como nuvens de uma tempestade se formando, mas a uma velocidade impossível na natureza. Não era uma escuridão normal, do anoitecer ou da mudança de clima, mas algo pior, mais profundo. O céu não tinha estrela alguma e o chão parecia cobrir-se de piche. E as sombras iriam alcança-la a qualquer momento agora.

— Milena! — ela gritou novamente, desesperada. E, apenas alguns instantes antes de as sombras a engolirem por completo, alcançou a irmã, assim que seus pezinhos tocavam o solo.

Mariana a envolveu com os braços, levantando-a do chão com uma agilidade que não sabia que possuía até então. Milena era pequena e leve em seus braços, mas algo estava errado. A sensação dela em seu colo não era a mesma com que estava acostumada. Nem o cheiro dela parecia certo.

Só então Mariana encarou Milena. Mas aquilo que segurava não era sua irmã. Tinha o mesmo tamanho, mas onde deveria haver uma criança, havia uma criatura disforme, de um verde enegrecido, e um rosto de olhos e bocarra demoníacos. Quando tentou soltar o monstro, ele se prendeu a ela pelo tronco, numa imitação bizarra de coala, seus dentes afiados vindo buscar sua jugular.

Mariana abriu os olhos, o corpo retesado dando um tranco na cama, despertando do sonho. Mesmo com os olhos abertos, ainda podia ver o demônio em sua mente, uma lembrança difícil de deixar para lá.

Foi só um sonho, repetiu para si mesma, tentando acalmar o coração acelerado com respirações lentas e cronometradas. Não era real. Você está a salvo. Milena está a salvo.

Mas não era verdade, era? Milena não estava a salvo — até onde ela sabia, estava o oposto disso, perdida só Deus sabia onde. Sua mãe estava morta. Seu pai estava morto. E ela...

Onde ela estava?

Olhou em volta, apoiando-se nos cotovelos para erguer o corpo. Era um quarto, exatamente do mesmo tamanho do que havia utilizado na noite anterior, mas diferente. Enquanto o outro era impessoal, apenas paredes brancas, uma cama e uma cômoda sem personalidade, neste havia vida. As paredes estavam pintadas de um tom claro de verde, embora a cor já desbotasse e descascasse em alguns pontos. Em cima da cômoda, havia uma dúzia de peças de madeiras de tamanhos variados e nos mais diferentes formatos: um cachorro, um carro, uma espada e até o que parecia a base para um violão. Havia roupas espalhadas pelo chão e então, bem ao lado da cama, um garoto.

Cidade da Meia-NoiteOnde as histórias ganham vida. Descobre agora