Branco

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Não importa o que faça: não volte a olhar perdidamente para as paredes. Fique comigo, fique comigo, somente comigo...

Eu conhecia essa voz. Uma voz nefasta escorrendo viscosamente pelas frestas dos meus pensamentos em branco. Branco. Cor maldita que me fazia perder a noção de conteúdo, como se todo meu "eu" fosse esvaziado e de repente eu era apenas branco. Era à isso que eu estava reduzido. Sentado de frente para o cursor piscando na tela do laptop, sentia que a voz queria me escravizar. Ficava cada vez mais implícito na forma como ela se movia ardilosamente nas arestas do silêncio perscrutador que me assistia no quarto. A voz exigia tudo de mim, sufocava meu equilíbrio até que eu ficasse visivelmente perturbado.

Fique comigo, fique comigo, somente comigo...

Ela nunca cessava de exigir.

Ar. Isso sim era uma palavra boa para pensar. Estalei meus dedos dos pés dentro do sapato de couro sintético, promotor dos meus calos mais conhecidos. Logo me convenci de ignorar a voz por um minuto, ou ela me deixaria louco. Ar, eu precisava de ar. Foi por isso que deslizei pela cadeira e fui parar na janela. Ela não estava totalmente aberta, só meio aberta, aberta o bastante para não fazer qualquer diferença para mim. Ora, quem fechou essa maldita janela? Com alguma dificuldade que habita pessoas desajeitadas, consegui levantar a vidraça e uma lufada de ar fresco invadiu através da renda sedosa da cortina. Uma cidade calada espreitava nas sombras, estendendo-se num retângulo plano feito um tapete luminoso. Suspirei profundamente, o oxigênio frio correndo por minhas veias. Dei um sorriso grotesco sem qualquer sinal de verdade. Minhas reações ao caos do momento me pareciam retardadas, mas não sabia como agir de outra forma. Sentia-me estranhamente engessado em minha característica falta de iniciativa. Por tudo que de mais sagrado existia no mundo, nesta noite o branco não iria me vencer. Não desta vez.

Voltei a ocupar minha cadeira office desgastada, perfeitamente habituado com os odores indescritíveis que subiam dela. Lá estava a página olhando para mim de um modo tão exigente que me fez estremecer. Às vezes, parecia que ela queria arrancar minha alma, me fazer perder a noção de quem eu era, absorver completamente minhas sinapses. Deus, como eu queria poder rasgá-la com meus punhos revoltados, comê-la, mastigá-la com um ódio concentrado até que não sobrasse mais nada. Ela sempre fazia isso comigo, só que nos últimos dias estava bem pior. Não me dava escolhas, não me abria possibilidades, e agora estava me roubando o refúgio das paredes. Eu estava sendo absolutamente manipulado pela cor do meu pesadelo. Não tinha como escapar. Ajeitei meus dedos em posição sobre o teclado flet esperando que as correntes que me prendiam se afrouxassem por um único segundo; seria tempo o bastante para libertar uma vogal, ou quem sabe amarrá-la disfarçadamente com uma consoante mais próxima. Ainda não era uma palavra completa, ou talvez fosse, poderia ser qualquer coisa além, mas eu tinha que fazer acontecer, tinha que digitar. Cocei a cabeça nervosamente e tornei a posicionar os punhos sobre o batente da mesa. Fitei o relógio de relance. A madrugada já estava uma hora à minha frente. Minhas costas fisgaram com uma dor centralizada, obrigando-me e arquear para trás e abrir os braços. Ossos clicaram surdamente nas juntas espalhadas.

Fique comigo, fique comigo, somente comigo... não olhe para as paredes, Andrew.

Onde elas estavam? Onde estavam as palavras? Isso não era justo. Será que aquela maldita página não se importava com a forma como eu estava me sentindo? Esfreguei os olhos agarrando bruscamente parte dos cabelos. Estava perdendo muitos ultimamente além daqueles que eu arrancava. Feito uma lagarta em metamorfose, um nó incômodo lutava no fundo da minha garganta querendo emergir na forma de gritos frustrados. Precisava fazer alguma coisa, ajudar minha imaginação febril a se soltar. Lembrei-me de minha modesta biblioteca na parede ao lado da cama. Com um gesto rápido, empurrei a cadeira apoiando o pé na escrivaninha, ouvindo enquanto as rodinhas silvavam no chão de taco. Os olhos dos meus dedos rapidamente encontraram um dicionário de temas e sinônimos. Palavras, preciso de palavras. Abri em uma página qualquer. Em negrito meu entendimento captou a seqüência venenosa que se estendia página adentro:

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⏰ Last updated: Dec 03, 2017 ⏰

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