Dilúvio Pós-moderno

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   Chovia caixas de papelão. As pessoas ignoravam. Continuavam seus passos, em linha reta, e pensamentos retos, em linha de passos. As caixas lhes atingiam os rostos e cabeça. Numa leveza digna de nada. Eu observava. As caixas iam ao chão, e pisoteadas eram sendo deixadas para trás, sujas e rasgadas, solitárias e abandonadas. Os objetos caíam das nuvens, aos poucos, continuamente, como um milagre ou uma maldição. Os carros continuavam seguindo a estrada, àqueles que esperavam o ônibus, ali continuavam, os carteiros seguiam adiante na rota, assim como os que dirigiam-se para o trabalho, escola e faculdade. Ninguém ao menos erguia a cabeça aos céus para tentar entender o que de fato acontecia. Quando em sua frente caíam caixas, passavam por cima.

   Um problema surgiu. Depois de algumas horas, a cidade encontrava-se cercada por milhões de caixas de papelão. Por mais que não tivessem peso, sua quantidade acabou por vencer a rotina cotidiana, e agora os homens eram surpreendidos, e preocupados, olhavam aos céus. Pessoas aos poucos começavam a ser soterradas. Suas tentativas de se desvencilhar eram inúteis, pois aos milhões surgiam as caixas, e aos milhões, derrubavam os bilhões pedaços de carne pensantes. E o mesmo acabou por acontecer com os carros, as casas, árvores, campos e prédios comerciais. As caixas venciam o metal, a madeira, o asfalto e a natureza. Em pouco tempo, tudo era caixas de papelão. No desespero, algumas pessoas tentavam nadar em meio às caixas, para cima, de maneira a tentar chegar à superfície, se é que ela existia. O oxigênio tornou-se limitado e os primeiros a morrer foram aqueles que sofriam de doenças respiratórias. Em seguida morriam os que sofriam de doenças cardíacas ao verem morrer os primeiros. E quando morreram os primeiros e segundos, os terceiros morriam por falta de esperança. E os quartos e quintos, pois eram crianças e idosos. E só depois de dias, pessoas voltavam a surgir em meio às caixas de papelão. Ao descobrirem a superfície, chegaram a ela e sobreviveram. Agora, preocupadas, olhavam, para os céus e imploravam o entendimento. Deus lhes olhou e sorrindo os fez perceber: algo de errado estava acontecendo.

   Ao final do penúltimo dia, o cheiro da carniça começava a surgir. Impregnava o olfato dos sobreviventes; era aquilo suas chagas, e o preço pela vida. E o cheiro das caixas de papelão era substituído, por fim, pelo cheiro da gente morta, pelo cheiro da decomposição, da carne, dos cérebros, dos corações, do carbono. Os que sobreviveram, reuniram-se em certo local, e discutiram maneiras de prosseguir. Uns defenderam que era preciso limpar tudo, e cavar, queimar e rasgar as caixas, até que os corpos e o asfalto aparecessem. Outros defenderam que deveriam se adaptar, e construir a nova civilização ali mesmo, a partir de como as coisas se encontravam. Alguns, apenas choravam sem entender nada. Eu, lhes observava. Depois de horas de discussão, não conseguiam chegar a uma resposta, e uma guerra começou. De um lado vinham socos e chutes, do outro, cabeçadas e mordidas. Sangue escorria das faces, manchavam as roupas e iam ao chão, sujando as caixas de papelão. Os mais fracos caíam primeiro, e quando caíam, era chutados e violentados até a morte. Em seguida, os mais fortes guerreavam com os mais fortes, de maneira que só restou um.

   Com um dos punhos quebrado, ele sangrava por quase todo o corpo, sujo e rasgado, solitário e abandonado. Era manhã, o sol surgia no horizonte. O homem sentou-se em meio às caixas de papelão, e aguardou. Não sabia o quê, ou o porquê, apenas sabia que tinha de aguardar. Pela tarde, veio a chuva, desmanchando por fim, as caixas de papelão e levando aos ralos o sangue que cercava o homem. Agora era possível ver os formatos; as casas, os carros, árvores, campos e os corpos agora eram apenas formatos, revestidos de caixas, e mais caixas, e mais caixas, aos milhões, prováveis bilhões de caixas de papelão. O homem, exausto e confuso, olhou para Deus e praguejou. Deus então, disse-lhe, "Levanta-te, e vai; a tua fé te salvou". O homem levantou-se, abaixou a cabeça, acendeu um cigarro e seguiu andando. E eu o observei até ele dar a volta ao mundo. Quando voltou ao ponto em que partira, deitou-se e olhando para o céus, visto que seu cigarro havia chegado ao fim, disse a Deus, "Vai tomar no seu cu". Assim, fechou os olhos, e de braços abertos, sentiu as primeiras caixas tocarem seu corpo.

Dilúvio Pós-modernoWhere stories live. Discover now