E eles vão te perseguir,
Até seu interior,
Até que você não possa mais rastejar.
(Way Down We Go - Kaleo)

Noelle

Eu quebrei um nariz hoje. Não me orgulho disso. Me orgulho menos ainda por não ter uma motivação que dê algum sentido para a violência. Se pelo menos fosse o nariz de um criminoso ou coisa do tipo... é por isso que estou sentada na sala de espera do consultório do terapeuta nesse momento. Mesmo não tendo horário com ele hoje, sou encaixada entre dois pacientes. Entro quando ele chama.

— O que te traz aqui hoje, dois dias antes do marcado? — o terapeuta pergunta.

— Eu deixei ela vencer.

Ela é a minha doença, TEI, que me faz quebrar narizes de pessoas inocentes sem motivo aparente. Perco o controle sobre mim, mas nunca fiz algo tão grave como hoje. Limpo o sangue da Brittainy, a minha vítima. Penso no Zack, o cara que desencadeou minha violência, recém namorado da Brittainy e capitão do time do qual ela joga e eu era líder de torcida, um cara incrível e que provavelmente me odeia agora.

Eu também me odeio. Quebrei um nariz por um motivo que nem eu sei. É só que, quando a Caroline, uma das animadoras, levantou da mesa resmungando que "aquilo não era certo", eu, que já estava bastante irritada por causa do meu treinador e as exigências dele, levantei atrás para ver o que não era certo. Como capitã das animadoras, eu precisava mantê-las em ordem. Lembro vagamente dos sussurros da cantina sobre eu ter perdido o Zack, o que me deixou confusa, e alguns comentários sobre a minha disponibilidade para satisfazer alguns apetites vorazes, o que me deixou muito irritada. Aí me levantei e a memória acaba.

Tudo que lembro depois é de ter sangue na minha mão, de ser levada para a direção, do olhar de repreensão da minha mãe, da voz chocada do meu pai ao telefone, da decepção enorme do diretor ao conversar comigo e de entrar no meu carro rumo ao consultório. Sozinha, porque é como vivo, apesar de ter meus pais do meu lado quando preciso.

— Certo. Por quê? — o homem pergunta sobre o fato de eu ter dado o controle de mim para a doença.

— Não sei. Minha vítima foi pedida em namoro por um cara que já fiquei, mas eu nem gosto dele tanto para ter ciúmes. Ele é bom pra todo mundo, mas não é como se isso me fizesse amá-lo. Só é um cara legal. — O Zack é um cara muito legal, mas não vejo ele como mais do que um amigo.

Agora provavelmente um ex-amigo. Que ótimo, como se eu já tivesse muitos na minha conta de... dois. Um, nesse momento. Isso só melhora.

Ele explica que eu não posso deixar que a vontade de ter algo — um relacionamento estável com alguém bacana, no caso —assumir o controle do que faço. Uma ilusão, na minha opinião, foi uma ilusão momentânea que me fez fazer aquilo. Como não lembro, é o que passo a acreditar que aconteceu. Depois de muito conversar, ser aconselhada e receber puxões de orelha, fui liberada, e saí da sala procurando a chave do carro na bolsa. Me dirigi para a porta sem olhar ao redor, o foco na bolsa e na busca.

— Ei gata, se você vai usar meu horário, podia pelo menos agradecer. — um homem com forte sotaque alemão pede.

Olho para cima, encontrando ninguém mais, ninguém menos que Peter Patrowski, maior desafeto do Zack. Apesar da beleza clássica dele, o que escuto sobre me faz sentir um arrepio na espinha de medo.

— Obrigada. — sorrio de maneira forçada e saio correndo para o carro.

Acho a chave após cogitar chamar uma equipe de resgate para me ajudar a encontrá-la, e destranco o carro, deixando minha cabeça bater no aro do volante, frustrada comigo mesma.

Tento dar partida, mas o carro não liga. Lembro que na semana passada a bateria estava meio ruim, e me jogo contra o banco. Tenho duas opções: deixar o carro aqui e ir para casa solicitar o trabalho do mecânico, correndo risco de perder o carro por semanas pela minha irresponsabilidade, ou esperar o dono desse Mustang de cinquenta e dois anos atrás ao lado aparecer e pedir que ele me deixe usar a bateria dele para carregar a minha.

Nem penso duas vezes na melhor opção. Coloco os pés no painel e espero o dono aparecer. Escuto música no celular enquanto fico lá, a voz de Jake Burley continua sendo a única coisa capaz de acalmar meus nervos e me tirar da frequência humana um pouco. Fecho os olhos e deixo a letra infiltrar na minha alma, apaziguando meus temores. Ouço passos no estacionamento e pulo pra fora do carro imediatamente. Quem seria se não aquele alemão?

— Oi, Peter, né? Meu carro deu problema, você me deixa fazer a chupeta? — peço desesperada, enfrentando o temor, sem notar o outro sentido.

Espero receber um não ou qualquer resposta grossa que imagino que ele daria. Mas ele me olha dos pés à cabeça e responde:

— Sempre que você quiser, gata. — e dá um sorriso de escárnio, me fazendo perceber o duplo sentido da frase.

Pego o grampo e aperto ele, esticando-o na direção do corpo dele, que dá um passo pra trás.

— Você coloca ou eu?

Ele dá uma risada alta e grave, como a voz de barítono é. Um som rouco, como se não risse com frequência. Caminho até o carro dele, cuidando de manter uma distância segura para fugir, caso necessário, coloco o grampo na bateria e ele se surpreende.

— Você sabe fazer isso?

— Parece que não sei? — dou meu sorriso de revanche, e ele balança a cabeça, como se afastasse algo.

Limpa a garganta, mas a pele é clara demais pra não denunciar o enrubescimento. Consegui deixá-lo envergonhado, mereço pontos por isso, Deus?

— O que você estava fazendo aqui? — pergunto a ele quando percebo que não me atacará.

De tudo que ouvi sobre Peter Patrowski, nada o levaria a frequentar um terapeuta.

— Alguém tem que saber a verdade sobre mim. E você? O que te levou a tomar meu horário? Tem algo a ver com o sangue nas sua mãos? — aponta elas, e as escondo atrás de mim.

Fico curiosa com a resposta vaga, mas respondo o que ele pergunta primeiro, de maneira honesta.

— Tive um ataque violento hoje. Quebrei um nariz e tudo mais, por isso o sangue. — envergonhada, tiro mais um pouco de sangue das unhas.

Haja álcool-gel pra me ajudar hoje.

— TEI? "Não deixe a luta vencer você"? — cita a frase da parede do consultório.

— É. Vamos lá, você sabe porque eu estava aqui, agora quero saber porque você estava, uma resposta precisa dessa vez. Se não for, hm, coisa da polícia.

Ele dá um sorrisinho e me analisa.

— Se algum dia nos encontrarmos novamente, te digo sem ressalvas. Não é um papo bom para um primeiro encontro. — isso não me deixa menos curiosa, pelo contrário. O monstrinho da curiosidade faz sapateado no meu cérebro, mas decido ficar quieta e não perguntar nada.

Quando meu carro pega, guardo o equipamento de recarga no porta-malas e agradeço a ele.

— Obrigada por me deixar recarregar o carro. Não é todo mundo que está disposto a deixar fazer a chu....— paro e me corrijo — a recarga.

— Sempre que você quiser, gata. — sorri, sagacidade pintando os olhos acinzentados.

Reviro os olhos e entro no carro. Quando vou pisar na ré, ele encosta na minha janela.

— Ei, ainda não sei seu nome.

— Quando nos reencontramos, se nos reencontramos, eu te digo. — dou meu sorriso vitorioso.

Fecho a janela, dou ré e aceno pra ele, que parece chateado, confuso e curioso, e entro na rua rumo ao primeiro dia do resto da minha vida.

Provocando Amor - Série Endzone - Livro 4Onde histórias criam vida. Descubra agora