― Senhorita Roslyn, eu sou o Sr. Augusto Jenkins, a seu dispor.

Eu aperto a sua mão, sem graça, e olho para a Dra. Santana.

― O Sr. Jenkins nos contatou ontem pela tarde. Ele teve um problema, mas veio assim que soube que você acordou. ― Ela explicou.

― Sou advogado. ― Ele acrescenta, talvez percebendo a minha cara de idiota. ― A sua avó me deixou encarregado de tudo desde o acidente.

Eu não processo muito bem aquelas palavras. O Sr. Jenkis me avalia, esperando uma reação, uma reação humana, melhor dizendo, mas tudo o que eu faço é piscar repetidas vezes. Aposto que ele deve me achar uma lunática. A Dra. Santana se aproxima de mim com a sua perícia médica.

― Espera... ― Reajo. ― Você disse...?

― Avó, isso mesmo. A Sra. Marie Satie, mãe do seu pai, Eric. Ele me alertou que vocês não tem tido... contato. ― Ele franziu o cenho para a palavra.

― Nenhum contato. ― Corrijo. ― Eu nem ao menos sabia! Ela está? Porque não veio me visitar?

― A Sra. Marie não reside no Brasil e não pode comparecer para vê-la e nem ao enterro.

O meu autocontrole falha por um instante. O assunto do enterro dos meus pais não era algo que eu conseguia lidar. A morte deles foi brutal e nem mesmo me despedir eu consegui.

Respiro fundo várias vezes, mas a sala se torna pequena para nós três. Falta ar. As paredes se fecham ao meu redor. Sinto a calmaria da Dra. Santana. Ela diz que estou hiperventilando e que preciso manter a calma.

― Talvez seja melhor você voltar outra hora. ― Ouço ela dizer.

― Não, não vá. ― Eu digo quando volto a mim. Não suportaria passar por isso duas vezes. ― Porque está aqui?

― A sua guarda está com a sua avó até que complete 18 anos, pelas leis brasileiras, é claro. Estou aqui para acertar tudo da sua ida para a Inglaterra daqui há dois dias.

― Marie mora na Inglaterra? E a minha casa? Não posso deixar tudo aqui!

― Srta. Satie, o seu pai deixou a Sra. Satie como sua guardiã legal, mesmo que possamos tentar uma emancipação, essa era a ultima vontade dele. ― O advogado fala. Golpe baixo. ― Basta assinar os papéis e resolverei tudo.

O advogado me entrega a caneta. Morar com a mãe do meu pai não deve ser tão ruim como ir para um abrigo. Marie deveria ter os seus motivos para nunca ter ido me visitar nos últimos dezessete anos. Mas se Eric havia confiado a minha segurança a ela, eu deveria lhe dar pelo menos o benefício da dúvida. Assino.


O Sr. Jenkins não estava brincando quando disse que resolveria tudo. Em dois dias, ele vendeu a nossa casa no Rio de Janeiro por um preço acima do mercado. Resolveu as pendências que meus pais haviam deixado, tirou o meu passaporte e visto, que ela já havia encaminhado durante o meu coma. Muito eficiente.

Ele me deixou alguns minutos para fazer as malas na minha antiga casa. Os novos compradores chegariam logo. Enchi duas malas com as minhas roupas e encaixotei alguns livros. Alguns eram meus e os outros eram os preferidos dos meus pais.

Optei por doar para a caridade todas as roupas deles. Era o que a mamãe teria feito. Levei as poucos jóias que a minha mãe tinha, as fotos e embrulhei os quadros do meu pai. Era isso. Toda uma vida envolvida em papel jornal e caixas de papelão.

Antes de ir embora, a campainha toca. Abro a porta e vejo a nossa vizinha de dez anos. As vezes eu tomava conta dela.

― Roslyn. ― Ela grita e me abraça forte.

― Ei, pequena, quanto tempo! ― Os meus olhos se enchem de lágrimas. ― Acho que você cresceu dois centímetros.

― Dois e meio. ― Ela me corrige. ― Está indo mesmo embora?

― Só por um tempo. ― Falo. ― Não conta para ninguém, mas vou voltar para cá quando ficar mais velha.

O Sr. Jenkins buzina. Era a minha deixa.

― Antes que eu me esqueça. ― Entro em casa e volto para a varanda como um caixa de papelão. ― Os meus brinquedos antigos. O casal que vai morar aqui não tem filho e não queria que fossem dados para qualquer um.

O rosto de Carolina se ilumina e pela primeira vez e muito tempo eu consigo sorrir de forma sincera. Ao menos alguém iria tirar algum benefício disso tudo.

No carro o Sr. Jenkins diz que ainda temos um tempo para mais uma parada. Não percebo aonde ele está me levando até que vejo um grande portão de ferro e anjos esculpidos em pedra. O advogado me leva até um corredor e se afasta um pouco. 

Eu os vejo. Não os meus pais, é claro, mas as duas grossas lápides de pedra. Eric Satie e Gabriela Satie. Filhos amados e pais memoráveis.

A inscrição deve ter sido ideia do Sr. Jenkins. Não vejo mal nenhum, mas sei que mamãe teria odiado. Um segundo sorriso sincero ultrapassa os meus lábios. Seguido de uma gargalhada. Paro. Não quero que o Sr. Jenkins me interne numa clinica.

Coloco uma rosa branca em frente ao lado de cada uma e reparo numa rosa vermelha solitária. O Sr. Jenkins não soube me dizer quem visitou os meus pais recentemente. O nosso acidente ficou bastante conhecido na cidade, pessoas desconhecidas costumavam ir até lá e até me visitar no hospital ela iam.

Quando volto para o carro a rosa vermelha é um pensamento muito distante. A minha cabeça está em outro lugar no momento. Do outro lado do mar. Numa cidadezinha pequena em sem graça chamada Wells. O meu lar nos próximos meses.  

A Corte de Sangue - EquinócioWhere stories live. Discover now