Capítulo 1: Onde está minha cabeça?

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— Ei, psiu! — O rapaz finalmente me notou. — Tem como você pegar aquela cabeça ali?

— Sou eu? — Ele apontou para si e confirmei. — Minha senhora, aqui tem várias cabeças. — Continuou, ao se aproximar do amontoado perto do meio-fio. — Serve qualquer uma?

— Claro que não! — respondi rispidamente e me dirigi para perto o mais rápido que pude com a minha roupa. — A minha tem uma fita vermelha perto da orelha. — Ergui a mão direita, indignada. — Deus me livre usar a cabeça dos outros! Tem um monte de velha com cabelo ensebado e cheio de piolho.

O riso alto do garoto passou despercebido pelos que estavam à nossa volta. Todos pareciam entretidos em suas tarefas: outras companheiras de ala vestiam-se com a ajuda da equipe do barracão, nossa diretora berrava para que as componentes parassem de conversa e se arrumassem, os ritmistas costuravam por entre nós, levando os instrumentos à dianteira da concentração, diversas pessoas tiravam fotos e bebiam aquela cervejinha antes do desfile.

Lá estava em mais um desfile. Essa seria a terceira escola a desfilar. A primeira, na sexta-feira, foi com a Alegria da Zona Sul. No mesmo dia, mais para o final da noite, rodei pelo Império da Tijuca. Hoje seria a vez da Estácio de Sá, minha escola de coração. Domingo, Beija-Flor; segunda-feira, Salgueiro, e, na Terça-Feira Gorda, havia me comprometido a sair pelo Arrastão de Cascadura. Como me metia em tanto desfile?

— Oh, tia — o homem me segurou no braço e a voz masculina me trouxe à realidade —, não estou achando fita em cabeça nenhuma. Não tenho o dia todo, tá vendo? — Olhei para a direção apontada por ele, o carro abre-alas da escola se deslocou mais um pouco. Nossa hora estava chegando.

— Meu garoto, olha direitinho, não consigo me abaixar e mexer aí com essa saia aqui. — Abri os braços mostrando minha impossibilidade devido àquela ter sido uma das roupas mais pesadas vestidas por mim até aquele momento da folia. Talvez o cansaço influenciasse um pouco minha percepção, mas, uma coisa era certa, meus movimentos estavam comprometidos com a vestimenta, parecia quase um mini-carro alegórico.

A fantasia, feita de uma renda vermelha e branca, toda trabalhada com um tecido estampado em dourado e o costeiro, seguindo o mesmo degradê, fazia com que tivesse certeza da conquista de um prêmio pela bela indumentária. Mesmo que fosse um sacrifício cada passo dado. Não queria nem pensar como andaria, rodaria e cantaria na Avenida. Uma coisa de cada vez. Primeiro, precisava achar minha cabeça. Sem ela, não desfilaria.

— Por que eles fazem uma roupa assim? — questionou o rapaz, revirando as cabeças empilhadas. — Dá pra ver o seu sofrimento, dona...

— Teresa, meu rapaz. — Encostei meus tornozelos na calçada. Agora era só sentar e rezar para não tivesse nenhum bueiro perto, tinha pavor de baratas. — O carnavalesco não deve ter mãe, só pode!

Sentei, graças a Deus. O meio-fio alto na parte onde as baianas estavam concentradas só podia ser uma bênção. Os joelhos agradeceram o momento de folga. Olhei em volta, admirando as fantasias da minha escola e os olhos encheram de água. Sempre era assim mesmo, me tornava muito emotiva ao estudar a concentração. Naqueles momentos anteriores ao desfile se podia sentir o ânimo da escola. Quando a parte plástica não estava satisfatória, os componentes eram combalidos. Não era o nosso caso, estávamos divinos naquela madrugada. Tudo tão bonito e caprichado que o sonho de voltar ao Grupo Especial pareceu tangível.

— E o seu nome? Desculpe a falta de educação — disparei, abanando o rosto com a mão esquerda —, mas essa roupa nem me deixa pensar direito. Cada passo é um martírio. Meus joelhos não estão aguentando. O calor também está de matar! Sabe, acho que estou ficando velha pra isso, talvez seja hora de ir pra Velha-Guarda.

Perdendo a Cabeça[Conto][Completo]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora