Voz

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Então, eu nasci.
Decidiram que eu teria um nome de menina, que eu teria um quarto rosa, bonecas, vestidos, laços, coroas de princesa e asas de fada.


Eu cresci um pouco mais, e fui para a escola.
Perguntaram se eu já tinha "um namoradinho", se haviam garotos bonitos, mas também disseram que eu não deveria brincar com eles, que eu não podia jogar futebol, subir em árvores, sentar de pernas abertas, sujar a roupa, quebrar um braço, cair um tombo. Eu deveria quieta, sentada durante o recreio, brincar de damas com outras meninas, gostar do que elas gostavam, assistir aos desenhos mais calmos e que tivessem princesas que eram resgatadas por príncipes corajosos e fortes. Eu não deveria ser forte e nem corajosa.


Eu cresci mais e comecei a esperar pelo príncipe dos contos de fadas.

E me deram revistas que ditavam o que eu devia ou não fazer para conquistar o garoto dos sonhos, quais roupas deveria vestir, como deveria me comportar. Eu deveria ser bela, recatada e do lar. Eu deveria não vestir roupas curtas, eu deveria não pedir para namorar ou ficar com nenhum homem, mas sim esperar que eles o fizessem. Eu não deveria amar garotas. Eu não deveria beber, fumar ou gritar. Eu deveria ser silenciosa, misteriosa, intocável, quase mística. Deveria guardar a virgindade à sete chaves e dá-la apenas a quem merecesse. Riram de mim enquanto eu tentava me igualar às outras garotas, enquanto eu tentava me encaixar nas regras e padrões das revistas. Não consegui. Desisti.


Os humores da rebeldia me fizeram não ouvir mais nada, e parei de tentar ser o que queriam. Fui ser o contrário.
Então, eles disseram que eu estava louca, que eu estava errada, que eu estava desonrando a educação que recebera. Eu tinha que beber e fumar escondida pelos cantos escuros, enquanto os garotos o faziam em plena luz do dia. Eles me apontavam o dedo na rua, enquanto eu andava de mãos dadas com uma amiga. Compararam-me à cantoras e atrizes que morreram jovens, vítimas de seus vícios. Inventaram boatos sobre mim, arruinaram minha reputação, chamaram-me de macho, criticaram meu cabelo curto, disseram que eu era bonita de rosto, mas que minhas roupas estragavam tudo. Avisaram a minha mãe sobre a fama das minhas amigas, simplesmente porque elas faziam o mesmo que eles. Beijaram minha boca e, no dia seguinte, negaram, disseram que foi minha invenção. Tentaram me beijar à força, apesar da minha recusa. Assediaram-me na rua, na família, na escola. Passei por ridícula, por piranha, vadia, rodada, sapatão, fiquei mal falada, queimei o meu filme.

Não me deram emprego, viraram-me as costas, culparam-me pelas violências e abusos sofridos. Até aqueles lá longe, na infância.


Cresci, tornei-me adulta, e precisei trabalhar.
Eles não me contrataram porque eu estava fora do peso, porque meu cabelo não era liso, porque a cor da minha pele era escura, porque eu era lésbica, trans, bi.

"Você tem que se decidir!"

Não me contrataram porque eu era imoral, não era ideal, não era nem bonita.

Não me contrataram porque eu era bonita demais, e era um risco ficar perto do chefe desse jeito.

Não me contrataram porque eu falava demais, alto, em bom som.

Não me contrataram porque eu era silenciosa, não gostava muito de interação, de conversar. Porque eu era tímida, introvertida.

Não me contrataram porque eu tinha um posicionamento político que não combinava com a empresa.

Não me contrataram porque a minha religião não condizia aos valores da instituição.

Não me contrataram porque eu era eu.


Comecei a cortar minhas asas, minhas arestas, meus pedaços, até caber na caixa. Precisava pagar as contas.

Comecei a vestir o que queriam, a dizer só o que podia e só quando fosse solicitada. Comecei a dar bom dia, boa tarde, boa noite, mesmo que por obrigação. Era o que esperavam de mim.


Então, comecei a namorar um homem.
Disseram-me que eu deveria esperar até o casamento, até o terceiro encontro, pelo menos uma semana, para transar. Disseram que eu deveria ser uma dama na rua e uma puta na cama, nunca o contrário. Disseram que eu tinha que vigiar o que postava no facebook, disseram que eu não podia mandar fotos nua, nem vídeos, nem nada que revelasse um pouco mais de pele. Disseram que eu deveria me comportar nas festas, não olhar para o lado, não ter amigos homens, não conversar com homens, não beber muito, mas o suficiente para ser sociável. Não deveria dançar e nem me divertir.

Disseram que eu não deveria me exaltar, soar grosseira, brigar, xingar, nem quando fosse necessário ou inevitável. Eu deveria manter a classe, engolir os sapos, deixar para lá. Eu deveria ser a mulher dos sonhos, a mulher perfeita, a mulher incrível. Eu deveria aprender todos os afazeres de casa e a cozinhar bem, a recepcionar as visitas de forma impecável, a manter a casa limpa, os filhos educados. Eu deveria ter filhos, ainda que não os quisesse.

Eu deveria estudar também, ser ótima profissional, bem-sucedida, alcançar as metas, ter amor pelo que faço, não ficar doente, não ficar cansada, aceitar, calada, os assédios do patrão.

Eu deveria ter amor incondicional pelos filhos e pelo marido quando chegasse em casa. Fazer a janta, lavar as roupas, ajudar com o dever de casa. Deveria me manter bonita, agradável, sorridente, bem-humorada, sem pelos no corpo, o cabelo sempre limpo e escovado, as roupas passadas e limpas, as unhas feitas, a maquiagem escondendo perfeitamente qualquer imperfeição.

Eu deveria me comportar como mãe de família, não beber, não fumar, não trair, não falhar nunca e em nada. Eu deveria ter uma religião cristã. As outras não funcionam.


E eu estava magra, esgotada, estressada.
Receitaram remédios, vitaminas, indicaram médicos, nutricionistas, psicólogos, psiquiatras, academias, personal trainers, perguntaram se eu estava doente, se eu comia, se eu vomitava, se minha saúde estava em dia. Disseram que eu era linda... de rosto. Disseram que eu não despertava tesão, que eu não era mulher, que eu deveria ter curvas, bumbum, seios fartos. Indicaram cortes de cabelo, modelos de roupas, cores, estampas e maquiagens que disfarçassem meus ossos sob a pele. Nunca me perguntaram o que eu achava, o que eu queria. Eu mesma não me perguntei. Fiz tudo o que disseram.


Engordei.
Aí, perguntaram como estava meu colesterol, minha diabetes, minha tireoide. Indicaram endocrinologistas, nutricionistas, psiquiatras, psicólogos. Indicaram dietas, remédios para inibir a fome, milkshakes diversos. Indicaram cortes de cabelo e maquiagens que afinassem o meu rosto, roupas, cores, estampas para disfarçar minha barriga, meus braços, minhas pernas, meus seios. Indicaram maneiras rápidas de perder peso, plásticas, massagens, cremes, cintas, exercícios.


Aí, eu inventei de envelhecer.
Indicaram plásticas novamente, cremes antirrugas, tinturas para os fios brancos, truques de maquiagem para disfarçar as manchas, psicólogos, psiquiatras, médicos, fisioterapeutas, academias. Indicaram alimentos que me proporcionariam longevidade e atividades introspectivas como crochê e bordado.
Mas eu não ouvia nada. A velhice me trouxera a degeneração de tecidos e órgãos importantes, e o tímpano foi um deles.


Comecei a ouvir a mim mesma.

Só então, eu soube o quanto tinha sido agressiva comigo mesma, obrigando-me a viver as verdades dos outros, a corresponder expectativas dos outros, a me encaixar em padrões que os deixavam confortáveis. Eles não gostam de diferenças, falhas, fraquezas, imperfeições.

Percebi, finalmente, que amava e tinha orgulho de quem era, meu corpo, minha orientação sexual, meus conhecimentos, minha maneira de ver o mundo, minha forma de pensar, minha história, minha vida.
Comecei a me respeitar mais, a me conhecer mais.

Saí de casa.

Fui me divertir, viajar, namorar.

As pessoas apontavam nas ruas, e me chamavam de imoral, de velha sem vergonha. "vê se isso é idade para namorar! Já está na hora de parar com isso, pendurar as chuteiras!", "Ele é mais novo que você!", "Ele é mais velho. Só está com ele porque ele tem dinheiro e vai morrer logo."
Eu tirava os aparelhos de surdez e continuava dançando, sem música, sorrindo, aproveitando a mais verdadeira, a mais importante de todas as vozes: a minha.

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